segunda-feira, 7 de outubro de 2013

[Resenha #010] O Ladrão de Raios (Percy Jackson e os Olimpianos - Livro 1) - Rick Riordan

Resenha também publicada no Skoob. Você pode ler mais sobre o livro clicando aqui.

UM ÓTIMO HERÓI E UMA HISTÓRIA EMPOLGANTE

Percy Jackson sempre teve problemas que o levaram a ser expulso de todas as escolas por onde passou. Com dislexia e déficit de atenção, e cercado por acontecimentos estranhos, ele nunca imaginou que pudesse ser importante para o futuro da humanidade. Mas está prestes a descobrir que sua vida é muito mais do que parece, que sua família esconde segredos que ele nunca imaginou, e que os personagens da mitologia grega são muito mais do que mitos.
Eu li O Ladrão de Raios em uma velocidade inacreditável: foram quatrocentas páginas em dois dias e meio. Acho que isso é o suficiente para afirmar que gostei do livro. Eu não esperava muita coisa da história, talvez por se tratar de um infanto-juvenil; mas ele superou em muito todas as minhas expectativas.
Não há pausas durante o livro. O ritmo é frenético, talvez pelo próprio personagem ser frenético. É uma aventura atrás da outra, um acontecimento inesperado atrás do outro, e as pausas para respirar, quando existem, são curtas. Em alguns momentos acontecem coisas tão absurdas que são engraçadíssimas, mesmo em momentos de tensão.
Falando em coisas absurdas, o livro praticamente não se preocupa em tornar os acontecimentos críveis, ou dar explicações para "encaixar" os elementos absurdos na nossa realidade. Por exemplo: existem deuses mitológicos vivendo até hoje, e pronto. Não existe nenhuma preocupação com as implicações disso, ou com o "como". É mágica, as coisas são desse jeito, nada é impossível. A forma como as pessoas lidam com o absurdo é também bastante irreal: há uma aceitação imediata de tudo, quase nenhum questionamento. O máximo que há é um "nossa, deuses gregos existem, que estranho", e a vida segue normalmente. Essa é para mim uma das melhores características do livro.
Há alguns problemas, claro, mas nenhum que eu considere grave. Certos elementos que deveriam ser surpresa são muito fáceis de serem adivinhados. Quando é dito que um dos amigos irá se tornar um traidor, ou quando alguns enigmas são apresentados, eu descobri muito rápido quem era ou do que se tratava - e eu não sou muito boa em desvendar enigmas. Isso tira um pouco a graça de algumas cenas que deveriam causar surpresa, mas como eu disse, não é um problema grave e essas cenas conseguiram ser empolgantes mesmo assim.
Uma coisa que gostei muito em O Ladrão de Raios foi o personagem principal. Percy é um garoto muito novo que teve uma vida difícil, e por isso mesmo ele tem uma proatividade que é ausente em muitos outros personagens principais de outras obras (como Harry Potter ou Eragon). Ele toma decisões, arruma confusão por vontade própria, tem vontade de lutar, e se mostra um grande guerreiro. Também não há muita preocupação com o politicamente correto, ou com tornar o herói excessivamente "bonzinho" - Percy não é, de jeito nenhum, o "cara bonzinho", e não pensa duas vezes antes de se livrar do jeito que der de quem lhe incomoda. Por outro lado, ele é dono de uma lealdade incontestável aos amigos. Um herói, sim, mas uma pessoa normal. Mesmo ele não sendo totalmente normal.
Não é preciso dizer que recomendo muito a leitura. O Ladrão de Raios é um livro fácil e rápido de ler, com uma história divertida e empolgante, e onde, apesar do ambiente cheio de absurdos, os personagens tem personalidades muito reais. Quem gosta de livros de fantasia, de histórias com muitas aventuras e quer um livro que vá ler muito rápido, não se arrependerá de ler esse.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

[Resenha #009] O Hobbit - J. R. R. Tolkien

Resenha também publicada no Skoob. Você pode ler mais sobre o livro clicando aqui.

Aviso: contém spoilers

LÁ E DE VOLTA OUTRA VEZ

Bilbo Bolseiro é apenas um hobbit, vivendo a típica vida de hobbit em sua bela e confortável toca, até o dia em que o mago Gandalf aparece em sua porta, seguido por treze anões. Eles irão arrastar Bilbo para a maior aventura que algum hobbit já viveu: viajar por grandes distâncias, através de lugares perigosos e desconhecidos, afim de recuperar o tesouro roubado dos anões pelo terrível dragão Smaug.
Comecei a ler esse livro sem ter a menor noção de que se tratava de um livro infantil; por isso, no início a narrativa me desagradou um pouco. Mas logo me acostumei com o jeito de Tolkien contar a história. E é exatamente assim que ele narra: como alguém que pega uma criança no colo e conta uma deliciosa história. A narrativa flui bem, não há muitos momentos de espera, nem passagens cansativas. As descrições da Terra Média são na medida exata para que o leitor consiga visualizar o cenário sem se aborrecer com passagens monótonas ou cansativas.
Embora a história seja fantástica, algumas passagens são um pouco estranhas. Logo no início, a forma como Bilbo acaba aceitando participar da aventura me pareceu um pouco forçada. Da mesma forma, também me pareceu forçada a forma totalmente repentina como a batalha final acontece. Como se o autor tivesse que "fazer mágica" para que certas situações acontecessem. Ou talvez essa sensação seja dada pela narrativa simplificada, própria para crianças.
Por outro lado, a maior parte do livro é simplesmente brilhante. Um dos momentos que mais gostei foi a travessia da Floresta das Trevas. É a partir desse momento que Bilbo começa a realmente importar na aventura, salvando todo o grupo primeiro das aranhas, em seguida dos elfos, até enfim tirar a todos da floresta. É nessa parte da história que o pequeno hobbit se mostra dono de coragem e inteligência - embora ambas só se mostrem em momentos de extrema necessidade.
Outro momento que não posso deixar de citar é quando Bilbo encontra o anel. Toda a sequência, desde que Bilbo desperta sozinho na caverna até o momento em que consegue escapar usando o anel, é fantástica; e a forma - um pouco cruel - como ele ganha o desafio de rimas é uma cena memorável.
Após a saída da floresta, temos afinal o encontro com o dragão e a tentativa de recuperação do tesouro. Daí em diante, todos os acontecimentos prendem o leitor de forma ininterrupta. Embora, como eu disse antes, a forma como o desenrolar das coisas leva até à batalha final seja um pouco estranha, a grande guerra é uma das cenas mais espetaculares do livro. Infelizmente, talvez pela natureza da narrativa, muito pouco é mostrado dessa batalha, e não é mostrado o seu desenrolar final, já que tudo é visto da perspectiva de Bilbo - que fica escondido o tempo todo. E embora alguns personagens morram, a parte trágica da morte é quase completamente apagada - mais uma vez, acredito que isso seja uma exigência da narrativa infantil.
Em resumo, O Hobbit é belíssimo, fácil de ler, com todos os elementos em medidas exatas - ação, aventura, e algumas ótimas doses de humor. Este é um livro que agradará crianças, jovens e adultos em igual proporção, e que deixará o leitor ansioso para ler mais sobre os hobbits e a Terra Média.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Palhaço

Isso aconteceu com a minha irmã, logo a narrativa é dela.

Eu estava sozinha no ponto de ônibus, encostada na mureta que separa a calçada do mar, quando eu vejo, ao longe, um palhaço.
O palhaço estava usando óculos escuros (!) e aqueles sapatos enormes de palhaço. E ele veio vindo na minha direção, andando igual ao Charles Chaplin, só que sem a bengala. A primeira coisa que pensei foi "Ok, normal. Ele deve entrar em algum ônibus pra vender coisa, fazer propaganda, sei lá".
Enquanto via aquele palhaço comecei a me lembrar de um episódio de Supernatural em que o Sam tinha medo de palhaço, e na época eu fiquei me perguntando porquê alguém teria medo de palhaço. Só que sozinha num ponto de ônibus, vendo aquele palhaço vindo na minha direção, e ainda por cima de óculos escuros, eu comecei a achar que ele tinha um pouco de razão. Palhaços podiam mesmo ser um pouco assustadores.
E o palhaço veio se aproximando, se aproximando, e eu pensando "o que será que ele vai fazer?". E ele parou na minha frente, muito perto de mim, praticamente na minha cara, e ficou parado, me olhando. E ele estava com aquela maquiagem de palhaço e os óculos escuros, então eu não conseguia ver a expressão dele, era assustador!
Logo que ele chegou eu levei um susto, e fiquei olhando para ele, e ele continuou olhando um tempão pra mim. E ele era grande, e eu fiquei pensando "ok, esse palhaço de óculos escuros parou aqui bem perto de mim e ficou me olhando, ele vai me agarrar".
Na hora eu achei que ele tinha me confundido com alguém. Só que se fosse uma pessoa normal, na mesma hora ia falar "opa, eu te confundi com alguém, foi mal" e ia embora. Mas não, ele ficou parado ali um tempão, nós dois nos encarando, e eu pensando aimeudeus que que ele vai fazer????.
Depois de muito tempo me encarando, ele me deu dois tapinhas no ombro e saiu. Sem dizer nada. Simplesmente seguiu seu caminho, indo pro outro lado do ponto, e eu fiquei olhando pra frente, pensando "ok, o que foi isso?". Ainda fiquei com medo de que ele pegasse o mesmo ônibus que eu, sentasse do meu lado e ficasse a viagem toda me encarando; mas ele saiu primeiro que eu, e nunca mais o vi.

* * * * *

Essa é a prova de que o dom de atrair coisas estranhas em ônibus (ou pontos de ônibus) é de família.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Menina Não

Meninos não podem gostar de rosa.
Concordando ou não, isso é um fato.
Por outro lado, hoje é normal meninas gostarem de azul. Só que nem sempre foi assim.
E quando eu era criança, não era assim.
Por algum motivo, quando eu era pequena, uma menina gostar de azul (ou simplesmente não gostar de rosa), brincar de carrinho, e não gostar de vestidos nem de bonecas, era uma coisa tão grave quanto um menino brincar de Barbie. Pelo menos era essa a sensação que eu tinha.
Ainda bem pequena, antes dos sete anos, eu era uma menina moleca no sentido mais cru da palavra. Parecia um menino, tanto no comportamento quanto em formas de pensar. Era violenta, gostava de brincadeiras que machucavam, gostava de bater nos outros. Odiava brincar de boneca, e nunca tive uma Barbie. Gostava de qualquer brincadeira que envolvesse correr, escalar, pular, bater, enfim, qualquer coisa que meninos gostassem eu gostava também.
O tempo passou, eu fui crescendo, e esse traço da minha personalidade não se alterou muito, embora tenha se tornado um pouco mais complexo. Eu ouvi tantas vezes que meninas não podiam ser assim, não podiam fazer as coisas que eu gostava, tinham que gostar do que eu não gostava, que chegou a um ponto em que eu não queria mais ser uma menina.
Não era uma coisa que chegava a ser preocupante, mas eu passei a me enxergar como um ser assexuado, mais próximo dos meninos do que das meninas (e até hoje as vezes me confundo e uso termos masculinos para me referir a mim mesma). Havia um porém muito importante do qual falarei depois, mas essencialmente, eu queria ser um menino.
Ser menino era mais legal.
Ser uma menina de menos de doze anos e querer parecer um menino não é uma coisa assim tão difícil, e nem causava tantos transtornos (apenas alguns puxões de orelha e olhares feios de vez em quando). O problema foi quando a adolescência começou a chegar, e eu comecei a ter os malditos problemas de menina.
Criar corpo não foi um grande problema, porque afinal, não mudou muita coisa (lágrimas). O verdadeiro problema é que uma criança desleixada é perdoável, mas uma adolescente sem vaidade não é. Eu não usava nenhuma maquiagem, nem mesmo batom; odiava saias e vestidos; só penteava o cabelo o suficiente para sair na rua e olhe lá; e a única coisa que me importava na hora de escolher uma roupa era o conforto. Na maior parte do tempo, eu parecia uma hippie esquisita.
Minha aparência e meu comportamento escandaloso (e nada feminino) as vezes faziam surgir alguns rumores sobre minhas opções sexuais, que as pessoas achavam que eu ignorava mas que eu sabia muito bem, embora não chegassem a me incomodar (e muitas vezes eu até brincava com isso). E aí entra o "porém" que eu havia dito acima, e que é muito importante para explicar pelo menos em parte o porquê de eu ser assim, e também para chegar a algumas conclusões sobre esse assunto: eu não gostava de meninas.
Por "não gostar", entenda-se ter total aversão a meninas e a qualquer coisa que me relacionasse com elas.
E eu adorava meninos.
Desde as minhas lembranças mais antigas, eu adoro meninos de tal forma que queria desesperadamente ser como eles. Quando se é criança, meninos não andam com meninas - os dois sexos, na verdade, costumam ser inimigos. E eu não queria isso, não queria estar no grupinho das meninas. Eu admirava os meninos, queria brincar com eles, encostar neles, bater neles. Meninas eram chatas, meninos eram legais.
Não faria sentido, portanto, achar que, por eu só andar com meninos, eu era lésbica. Se fossem fazer alguma relação com sexo, deveriam achar que eu era uma maníaca tarada, ou algo parecido.
Enfim. Isso durou boa parte da minha adolescência. Lembro que costumava me referir a mim mesma como um "ser indefinido", querendo dizer que eu era assexuada (o mais bizarro é que conheço várias pessoas que também se dizem assexuada). Quando fiz dezessete anos e fui virando gente, comecei a parar com isso - afinal, os meninos não eram mais inimigos das meninas, e eu podia brincar com eles sem me tornar um menino.
Mas até hoje, ando mais com meninos do que com meninas. Até porque, eu faço um curso em que mais de noventa porcento dos alunos são meninos.
Não importa quanto tempo passe. Sempre acharei os meninos mais interessantes pra brincar.
Sempre.

* * * * *

Eu ando observando, nas minhas peregrinações pela vida, que no geral meninos afeminados acabam se tornando gays, por uma série de fatores complexos demais para eu tentar explicar aqui. Conheço poucas meninas lésbicas e não sou próxima das que conheço, mas conheço algumas meninas que assim como eu eram "menininhos", e assim como eu, nunca chegaram nem perto de ser lésbicas.
Tenho a teoria de que isso acontece porque as mulheres são mais fortes do que os homens. Um menino afeminado sofre bullying e fica traumatizado. Uma menina que parece menino sofre bullying e bate em quem faz bullying com ela. E não está nem aí para o que pensam a respeito.

* * * * *

Hoje eu sou uma menininha fofa que gosta de Hello Kitty e usa lacinho na cabeça.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Dengue - Uma Aventura

Era uma época conturbada. Estava em época de provas finais na faculdade, andava dormindo muito pouco, estudando demais, fazendo muitos trabalhos. Isso acontece todo período, mas é sempre muito estressante. No dia seis desse mês, uma sexta-feira, seria mais um dia agitado: eu tinha uma prova, uma apresentação de trabalho, e tinha que estudar para as provas da semana seguinte.
Mas acabou sendo um dia muito mais agitado do que eu tinha imaginado.
Era de madrugada e eu estava dormindo, até que acordei. Sentindo dor. Acordei por causa da dor e não consegui dormir de novo por causa dela. Não era uma dor em um lugar específico, nem era uma dor normal: era uma dor insuportável, no corpo todo. Também tremia de frio, e ao mesmo tempo suava muito. Minha cabeça doía como se um rolo compressor estivesse passando em cima dela. Eu mal conseguia me mexer, e cada movimento fazia tudo piorar. Parecia que eu estava morrendo. Parecia mesmo que eu estava morrendo.
Um pensamento me veio à cabeça. Eu quis negar. Disse a mim mesma que não era aquilo, que podia ser qualquer coisa. Mas a palavra voltou à minha cabeça. Eu sabia o que era. Sabia desde que abri os olhos e tive a sensação de que estava sendo pisada por um elefante.
Dengue.
Não deve ser, eu disse para mim mesma, diagnóstico de dengue não é uma coisa tão simples assim. Mas não se sente uma dor como aquela por causa de uma gripe. Aliás, não consigo pensar em nenhuma outra doença comum que faça alguém sentir tanta dor. Ok, disse para mim mesma, isso parece mesmo dengue.
E era.
Consegui me manter quieta até de manhã, quando minha irmã acordou. Pedi socorro a ela, e logo meus pais estavam no quarto me acudindo.
À base de remédios, consegui fazer a prova aquele dia (que por sorte foi em trio, caso contrário teria sido um desastre). Mas mandei a apresentação do trabalho pro espaço, e fui para casa, onde fiquei sofrendo o resto do dia.
Só de lembrar disso, sinto a cabeça doer. Quem só teve doenças mais simples e nunca teve dengue não é capaz de imaginar a dor.
O sábado foi ainda pior, e a madrugada de domingo bateu o recorde. Como tenho o estômago fraco, acabei passando mal pelo excesso de remédios (eu estava tomando oitocentos miligramas de paracetamol para a dor). A dor só piorava. Também tinha febre, e a febre não abaixava de jeito nenhum. Meus pais acabaram tomando uma decisão drástica: me levaram para o hospital.
Só que existe uma coisa muito peculiar no tratamento da dengue pelo sistema público: eles não atendem casos de dengue em hospitais. A informação que nos deram foi que, mesmo que você chegue lá literalmente morrendo, eles não te atenderão se for dengue. Por quê? Não sei. Não tenho a menor ideia.
O jeito foi ir para o UPA de Carapina.
Eu não sei se existem UPA's e PA's em outros lugares, então aqui vai uma breve explicação: UPA significa Unidade de Pronto Atendimento (PA é a mesma coisa, sem o "Unidade"), e é como um posto de saúde, mas para atendimentos emergenciais, inclusive fazendo internações em alguns casos. Também podem ser chamados carinhosamente de Portas para o Inferno, Casa dos Desesperados, etc. São um inferno. Ficam estrategicamente localizados nos piores lugares possíveis, têm um atendimento péssimo, vivem lotados, e a impressão que tenho é que os médicos que trabalham ali largaram a faculdade na metade do curso (ou sofrem de amnésia ao pisar ali dentro). E, fora os postos de saúde (que não abrem em fins de semana), são os UPA's que atendem casos de dengue.
Como era domingo de manhã, tive a incrível sorte do UPA de Carapina estar quase vazio. Fui atendida bem rápido, fiz um exame que indicou que eu devia estar mesmo com dengue, me colocaram no soro, me passaram milhares de remédios - inclusive um que eu não poderia de forma alguma tomar em caso de dengue - e me mandaram para casa, dopada.
No dia seguinte, fui ao posto de saúde do meu bairro - aliás, o posto do meu bairro é excelente, e o tratamento que tive lá foi muito bom. E então eu, que sou uma pessoa que nunca vai no médico, de repente me vi em uma peregrinação diária por consultórios. Nos vinte dias em que a dengue durou, eu fiz mais exames de sangue do que devo ter feito na minha vida inteira. Tudo para controlar o nível de plaquetas, que estava a cento e doze (o normal é quatrocentos e pouco).
Não existe um tratamento de verdade para a dengue, com remédios ou coisas do tipo. A única coisa que se pode fazer é beber o máximo de líquido que for possível, e um pouco mais. O médico me mandou beber cinco litros de água por dia, coisa que eu obviamente não consegui - e olha que normalmente eu bebo muita água. Minha irmã e meu pai também pegaram dengue, e como minha irmã não bebe água, ela conseguiu a proeza de ficar muito pior do que eu - as plaquetas foram para oitenta e pouco - e demorou bem mais para se recuperar. Eu, enquanto escrevo isso aqui, já estou melhor mas ainda não estou cem porcento.
O mais engraçado é que a gente descobriu que existem tratamentos alternativos que não são receitados nos postos de saúde, mas que funcionam e não são tão caros. Existe um remédio homeopático chamado Proden, que a minha irmã tomou, que funciona e é muito bom. Existem outros tratamentos à base de plantas que não são "mágica", realmente funcionam. E eles são proibidos de serem receitados em consultórios públicos.
Outra coisa muito legal que descobri é que o paracetamol, apesar de ser muito usado no combate à dor causada pela dengue, é prejudicial ao fígado e pode acelerar processos de dengue hemorrágica. Ou seja, se você estiver só com uma denguezinha (se suas plaquetas não caíram muito) não tem problema tomar, mas se for um caso mais grave e você tomar paracetamol, você pode morrer. Mas no posto eles não falam isso, só falam para evitar tomar em excesso e não explicam o porquê. Muito legal isso.
Além disso, muitos remédios que são contra-indicados em caso de suspeita de dengue não deveriam ser. Você só não pode tomar remédios que causem hemorragia ou que tenham AAS. O Benegripe não tem AAS, ou pelo menos não consta na fórmula, mas ele está nas listas de remédios que não pode tomar. Por quê? Não sei.
Mais uma: enquanto você está com dengue, você não vai saber se você está com dengue. O exame para confirmar só pode ser feito depois de oito dias, e o resultado só fica pronto uns dez dias depois. Ou seja, enquanto você está com os sintomas, eles vão te tratar pressupondo que você está com dengue, e e você só vai saber se teve mesmo dengue quando já estiver curado.
Resumindo tudo: se você estiver com dengue, beba o máximo de líquido que conseguir e um pouco mais. Não tome paracetamol. Vá atrás de tratamentos alternativos. E (e isso serve para qualquer doença) não confie cem porcento nos médicos. Nunca.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Paranoia

O que eu vi hoje no ônibus deve estar no meu top 10 de Coisas Estranhas que Já Vi em um Ônibus.
Eu estava sentada no lado do corredor, e o ônibus estava lotado. Eu estava ouvindo música no fone de ouvido e com pensamentos totalmente aéreos, alheia a tudo ao meu redor, quando por algum motivo olhei para a menina que estava sentada no banco em frente ao meu, de costas para mim.
Não havia nada demais nessa menina. Ela estava sentada do lado da janela, mexendo no celular, e eu não tenho a menor ideia de porquê reparei no que ela estava fazendo. O fato foi que vi que ela estava com uma foto aberta no celular. Achei aquela foto estranhamente familiar, e ainda demorei alguns segundos para perceber por quê: era uma foto dali mesmo, do corredor do ônibus. Mais especificamente, era uma foto de uma menina que estava em pé próxima ao banco.
Pelo ângulo da foto, dava pra perceber que tinha sido tirada de forma bem discreta. Não havia absolutamente nada demais na menina: ela estava com um headphone, vestida de forma comum, tinha uma aparência comum. Enfim, não havia nada que justificasse o fato da menina sentada na minha frente ter tirado uma foto escondida dela dentro de um ônibus. Eu tive a impressão de que a garota estava mandando aquela foto por mensagem para alguém, mas não tenho certeza.
No início, eu só achei a situação inusitada. Depois, eu comecei a pensar nas implicações daquilo. A menina não sabia, mas tinha uma foto dela no celular de um estranho. Ela não tinha a menor ideia de quais eram as intenções daquela pessoa ou o que ela pretendia com aquela foto. E se aquilo acontecera com ela, podia acontecer com qualquer um.
Imagine se você está andando na rua e alguém tira uma foto sua, sem que você perceba.
Nesse exato momento, podem existir fotos suas espalhadas pelos celulares e computadores de pessoas que você nunca viu.
E não estou falando de fotos de facebook, previamente selecionadas para ficar minimamente apresentáveis. Estou falando de fotos que você nem sabe que tirou. Fotos que talvez sejam daquele tipo que você pede para a pessoa que tirou deletar imediatamente.
E elas estão nas mãos de pessoas que você nem sabe que existem. Talvez sendo mostradas para outras pessoas que você nunca viu.
Você não faz a menor ideia do que essas pessoas vão fazer com essas fotos.
Ou o que estão comentando dessas fotos.
Talvez estejam fazendo rituais satânicos usando suas fotos. Talvez algum tipo de grupo de elite esteja usando sua foto, tirada em um momento qualquer do dia, como um exemplo de "como não se vestir", ou coisa pior. Talvez algum maníaco tenha se apaixonado por você e tenha uma foto sua como papel de parede no computador dele. Talvez alguém esteja pensando em te sequestrar, e esteja tirando fotos suas nos seus trajetos diários, para preparar uma armadilha para você. Ou talvez estejam simplesmente tirando fotos suas, nas mais variadas situações, por qualquer outro motivo bizarro e desconhecido.
Paranoia?
Talvez.
Mas todo dia você vê pessoas mexendo no celular do seu lado. E você não tem a menor ideia do que elas estão fazendo.
Elas podem estar tirando fotos suas.
E você não tem a menor ideia do que elas vão fazer com essas fotos.
Ou quem vai ver essas fotos.
Ou - e muito pior - como você saiu nessas fotos.
Talvez seja paranoia. Mas acho que, depois disso, eu nunca mais vou ficar confortável próxima a estranhos segurando celulares.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

[Resenha #008] Quando as Bruxas Viajam - Terry Pratchett

Resenha também publicada no Skoob. Você pode ler mais sobre o livro clicando aqui.

TRÊS BRUXAS CONTRA UM FINAL FELIZ

Uma fada madrinha obcecada por histórias e finais felizes implanta uma ditadura de contos-de-fada em uma cidade. Com a morte da bruxa que era a segunda fada madrinha, três bruxas herdam a responsabilidade de ir até lá e impedir que o final feliz aconteça.
Décimo segundo livro da fantástica série Discworld, Quando as Bruxas Viajam segue os moldes dos outros livros da série: muito humor inteligente, comentários irônicos por todos os lados, e uma quantidade de trocadilhos que deve ter tirado o sono dos tradutores. Porém, ele peca em um aspecto importante: o desenvolvimento da história.
O próprio enredo já é um pouco confuso. No início do livro, é muito difícil entender o que está acontecendo ou qual é o foco da história. E o problema é que a história tem dois focos (ou dois "momentos"): o primeiro, que vai mais ou menos até a metade do livro, é a viagem das três bruxas - Vovó Cera do Tempo, Tia Ogg e a "madrinha" Margrete - pelo "estrangeiro" até o reino de Genua; e o segundo, que é o que realmente importa, em que uma bruxa - ou fada madrinha - obcecada por contos-de-fada está fazendo histórias acontecerem e obrigando as pessoas a serem "felizes para sempre", independente da vontade delas.
O segundo foco é genial. O primeiro, nem tanto. E com isso, metade do livro acaba se tornando lenta, um pouco chata e aparentemente desprovida de objetivo. A viagem das bruxas até tem momentos engraçados, mas como eu disse, nessa parte é muito difícil entender aonde o livro quer chegar; por isso, em muitos momentos você pensa "é engraçado, mas e daí?", ou acha as personagens apenas irritantes.
Por outro lado, após a metade, as coisas começam a ficar mais claras - e aí o livro se torna muito interessante. Descobrimos mais detalhes sobre as intenções de Lily, a fada madrinha má; descobrimos quem são vários personagens que aparecem momentaneamente no início do livro; e descobrimos, afinal, a que o livro veio. E Terry Pratchett finalmente se mostra em toda a sua genialidade.
Quando as Bruxas Viajam é um livro sobre a vida real, e como ela não deve ser um conto-de-fadas. Ele questiona o que o "foram felizes para sempre" realmente significaria na vida real. E, mais profundamente, nos faz pensar no que significa ser feliz. Tudo isso de forma engraçada, irônica e genial.
Resumindo, esse não é um dos melhores livros da série Discworld, mas vale muito a pena ler. E vale a pena insistir, mesmo que o início não pareça muito empolgante, porque algumas frases ditas perto do final são do tipo que nos fazem ficar pensando a respeito durante muito tempo.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Bullying - Filhos e Pais

Estamos formando uma geração de imbecis.
Quem acompanhar noticiários diariamente vai ouvir falar de pelo menos um caso de bullying por semana. Sabendo que apenas uma parcela muito pequena desses casos chega à imprensa, podemos concluir que há uma epidemia de bullying ameaçando nossas pobres criancinhas. Alguns casos que vi recentemente: garoto é obrigado a mudar de escola porque foi chamado de gay; garota se mata porque a chamaram de feia na escola; garota tira a roupa na webcam e se mata porque ficou com má fama; garoto gordinho entra em depressão por causa de bullying. Todo mundo sabe que a escola nunca foi o lugar preferido das crianças, mas parece que hoje se tornou um lugar realmente perigoso. Você vai para lá normal e pode voltar deprimido e com tendências suicidas (ou, em certos casos, homicidas). Certo?
Errado.
A culpa não é da escola.
É sua.
Seu idiota.
Em primeiro lugar, que tipo de imbecil é você que fica quieto chorando enquanto um bando de moleques da sua idade e do seu tamanho ficam fazendo hora com a sua cara? Você está sendo fraco e covarde sim senhor, então ou vira gente e vai dar uma surra nesses idiotas, ou se mata mesmo, porque não tem lugar para gente fraca no mundo.
É claro que todo mundo se sente frágil de vez em quando e é bom correr para o colo da mamãe e chorar, mas tudo tem um limite nessa vida. Pelo amor de Krishna, como é que você deixa as coisas chegarem a um ponto em que tudo vai ficar tão insuportável que você vai pensar em se matar? Se você for uma pessoa superior que não se importa com implicâncias, ok, simplesmente ignore; mas se não for, então no primeiro comentário idiota já pule em cima do imbecil e faça ele se arrepender a ponto de nunca mais na vida querer dizer nada a seu respeito.
É claro que, sendo adolescentes, é bom resolver as coisas como bons adolescentes: à base de socos, chutes e mordidas. Esse tipo de briga saudável que nos deixa boas cicatrizes pelo resto da vida. Nada de facas ou armas, ouviram crianças? E nada de juntar "a turminha" para dar uma surra no imbecil que te provocou. Se fizer isso, vai continuar sendo um fraco imbecil que é incapaz de resolver os próprios problemas. Existem muitos casos em que você vai precisar de ajuda e não tem nada demais em aceitá-la, mas casos de reconquista da sua honra e dignidade você deve resolver sozinho.
Que tal parar de chorar e de correr para o colinho da mamãe, e tentar resolver seus próprios problemas?

* * * * *

Agora que já falei com o filhinho, vamos falar com a mamãezinha e o papaizinho.
Seu filho está sofrendo bullying? Apanha dos amiguinhos? Ouve comentários maldosos? Está deprimido e chega em casa chorando?
A culpa não é (só) da escola.
A culpa não é (só) das outras crianças.
A culpa não é, ao contrário do que eu disse acima, do seu filho (e não deixe ele saber disso).
A culpa é sua.
Seu idiota.
O que temos hoje são mães e pais que tratam os filhos como bonequinhos de porcelana, e posso falar com total conhecimento do assunto porque conheço vários pais. Não deixam a criança andar de bicicleta nem dentro de casa, porque ela pode cair e morrer; não deixam a criança brincar sozinha na rua, porque a rua é um lugar muito perigoso e ela pode ser sequestrada e estuprada e assassinada; não deixam a criança subir em árvores, porque ela pode cair e quebrar o pescoço; e se a criança chega em casa chorando porque um coleguinha xingou ela ou bateu nela, põe a culpa em toda a humanidade e troca o filho de escola.
Bem vindo ao mundo! Não sei se você sabe, mas nesse planeta em que vivemos e nessa espécie à qual pertencemos, é normal pessoas sofrerem acidentes, se machucarem e até morrerem mesmo. Se você tem medo de que seu filho morra a ponto de bloquear a vida dele, então não tenha filhos! Amar o seu filho e ter medo de que algo ruim aconteça é normal, mas não é justo e não é certo que você comprometa todo o desenvolvimento e toda a vida adulta de uma criança por causa desse medo. Filho não é boneco. Você precisa ensiná-lo a se proteger, a encarar a vida sem medo, a lutar pelo que acha certo. Mas o que os pais fazem hoje é fazer o filho acreditar que é o centro do universo e que sempre vai ter o papai e a mamãe para lhes dar tudo o que quiserem e os proteger de todos os males do mundo. Isso obviamente não é verdade, em primeiro lugar porque os pais costumam morrer antes dos filhos, e em segundo lugar, porque muito antes de morrer, os pais já vão ter muito pouco controle sobre a vida do filho.
Quer evitar que seu filho sofra bullying? Muito difícil, porque crianças, por puro instinto, querem ferrar umas às outras (tenho a teoria de que, se deixarmos um grupo de bebês sozinhos por certo tempo, eles vão se matar até que só sobre um). Mas que tal começar ensinando seu filho a não ser um babaca? Se ele não for gordo (fora em casos de problemas hormonais, se seu filho é gordo, a culpa é sua), não for um egocêntrico antipático, não for metido; em resumo, se for um cara com bom senso e legal com todo mundo, ele vai andar longe do bullying na maior parte do tempo. Mas todo mundo vai passar por isso ao menos uma vez, a não ser que se enfie em um buraco e fique lá até morrer.
Quer ajudar seu filho que sofre bullying? A não ser em casos de descontrole total da situação (coisa que para mim já passou do ponto de bullying e virou caso criminal mesmo), ensine seu filho a revidar. Seja com palavras, seja com atitudes, seja na base da pancada mesmo. Olho por olho, dente por dente.
Mas Vitoria que horror eu não quero que meu filhinho lindo se torne um menininho violento! Ok. Então deixe seu filhinho lindo apanhar e chorar, e mude ele de escola sempre. Aí, quando um moleque que nem armado está for assaltar ele e ele entregar tudo sem reagir, vai lá atrás do ladrão reclamar, vai. Ou quando um vagabundo chegar na sua filhinha linda e estupra-la dentro de um ônibus sem nenhuma arma, apenas porque ela estava com medo demais para reagir, vai lá depois brigar com ele. Ah, claro, já ia me esquecendo: quando ele for passado para trás no trabalho por um colega sem escrúpulos e mais esperto, vai lá chamar a atenção do chefe, vai. Vai mostrar para o mundo adulto o quanto o seu filhinho lindo tem um bom coração. Tenho certeza de que isso será muito útil para ele.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

As Memórias Mais Antigas

Lembro de me esconder atrás de um muro tão pequeno que hoje não chegaria nem na metade da minha perna.
Lembro de, em um dia pouco antes do Natal, estar contando para vários amigos meus que entraria na escola no ano seguinte, depois que fizesse três anos.
Lembro de estar no colo do meu pai, que estava tentando me fazer dormir, e eu era tão pequena que ele me segurava com os braços esticados de frente para ele, deixando minha cabeça nas mãos e minhas pernas quase esticadas no braço dele.
Lembro de só saber pensar sem palavras.
Por isso, quando eu escuto pessoas dizendo que não se lembram de nada antes dos sete anos de idade, eu fico muito chocada.
Claro que muita coisa eu não me lembro claramente. E muitas lembranças que eu tenho são tão soltas e fora de contexto que não tenho a menor ideia da idade que eu tinha. Consigo ter uma ideia melhor de idade porque me mudei muito, então dependendo do lugar em que a lembrança ocorreu, posso estimar uma idade; mas coisas antes dos seis anos, a não ser lembranças muito específicas como as que citei acima, é praticamente impossível saber quantos anos eu tinha.
Mas a questão é: como é possível pessoas não se lembrarem de nada de antes dos cinco anos? Eu me lembro até dos meus dois anos (talvez até algumas coisas de antes), e por um bom tempo achei que isso era absolutamente comum, até que algumas pessoas começaram a simplesmente não acreditar quando eu comentava "eu lembro que com dois anos aconteceu isso...". Descobri que dois ou três anos é realmente muito cedo, mas com quatro, cinco anos, você já é um ser bem desenvolvido e totalmente desanexo da sua mãe. Como é possível que nada de relevante tenha acontecido na sua vida até os cinco (seis, sete!) anos?
Muita gente tem como primeira lembrança o primeiro dia de aula. De fato, isso é totalmente normal e compreensível: quem cursa o maternal ou o pré (ou seja lá que nome dão a isso hoje) entra na escola muito cedo, e é um choque enorme: a primeira separação física dos seus pais, a entrada em um mundo estranho. É um trauma que você vai levar para a vida inteira. E se você tem três ou quatro anos, dificilmente você vai ter tido algum outro acontecimento tão chocante antes disso. Mas algumas pessoas só entram na escola aos sete, e não consigo acreditar que essa pessoa não teve absolutamente nenhum acontecimento digno de ficar gravado na memória antes disso.
Na verdade, não tenho a menor ideia de porquê eu lembro de coisas tão aleatórias quanto estar brincando na rua ou estar no colo do meu pai. Me lembro, por exemplo, de com quatro anos estar arrombando a janela de uma casa "abandonada", e é uma lembrança grandiosa o suficiente para ficar gravada; mas lembro também de estar pulando em cima de um tronco de árvore, por volta dos cinco anos, e não tenho nenhuma razão para lembrar disso.
Lembro de entrar embaixo de um caminhão, e o dono do caminhão chegou e ligou o caminhão (lágrimas caem pelo meu rosto). Foi um caos total. Existe um motivo para eu lembrar disso: o susto enorme que levei (embora não tenha ficado realmente com medo).
Mas me lembro de, com a mesma idade, estar com duas amigas minhas, depois do almoço, e discutir com elas porque eu queria brincar de correr e de lutinha, enquanto elas queriam brincar de boneca. Não existe nenhum motivo para que eu lembre disso.
É engraçado que lembranças muito antigas, como as da primeira infância (até os três anos), aparecem para mim meio como em um filme antigo, mas com uma inundação de sensações. Lembro de estar sentada na janela (não do lado da janela, e sim em cima da janela), de tarde, olhando a chuva molhando as plantas no jardim. Junto com essa lembrança, me vem o cheiro inebriante de terra molhada, de chuva, o barulho da água caindo nas folhas da árvore enorme que tinha no nosso jardim. Lembro de estar um pouco frio, e eu não sabia exatamente o que era o frio, o que significava aquela sensação e como lidar com ela. Lembro de gostar de olhar a chuva no jardim com um prazer hipnótico. Essas lembranças vêm para mim em uma inundação de som, cheiro, frio. É uma lembrança boa.
Lembro de sentir cada coisa muito profundamente, de amar as coisas muito profundamente, de pensar muito profundamente.
Acho que uma pessoa que não lembre de sua primeira infância, ou ao menos dos cinco primeiros anos de sua vida, perde muita coisa. Nunca mais você vai ser tão puro, tão cru, quanto naquela época. É a fase em que você está mais próximo do ser humano ancestral, do mundo de onde você veio, dos espíritos ancestrais, enfim, daquilo tudo que, depois de adulto, você vai pensar que é bobo e desimportante. É bom lembrar de uma época em que o simples fato de existir parecia fascinante.

* * * * *

Vitoria Esewer é incapaz de lembrar o que almoçou ontem.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A Carteira

Eu já era era adolescente, mas tinha menos de quinze anos - imagino, na verdade, que tinha uns doze, mas não tenho certeza. Estávamos andando pela cidade, e por algum motivo eu resolvi que queria comprar uma carteira.
Realmente não consigo imaginar um motivo para querer uma carteira naquela época. Eu não tinha dinheiro, não ganhava mesada, nem tinha nenhum documento. Acho que envolvia alguma ideia do tipo "sou quase uma adulta e adultos usam carteiras", mas não tenho certeza. Só sei que meus pais resolveram atender a um pedido daquela criança tão boazinha que eu era (e eu era mesmo, foi uma fase boazinha que tive) e me levaram em uma loja que vendia umas carteiras bem baratinhas, para que eu escolhesse uma. E no meio de tantas carteiras dos mais variados tipos, eu escolhi uma carteira do Piu-Piu.
Piu-Piu.
Aquele passarinho que fala "eu acho que eu vi um gatinho".
Era uma carteira normal, preta, só que tinha o Piu-Piu bordado na frente. Era fofinha, mas aquilo estava muito longe de me deixar mais próxima do mundo dos adultos.
Eu usei essa carteira até os meus dezessete anos. Era bastante infantil, mas era bonitinha, e eu a adorava. No início, eu não tinha nada para colocar dentro dela, então a enchia de papéis onde escrevia poeminhas. Com o tempo, fui arrumando mais coisas para colocar: fotos 3X4, papéis de bombom (coisa de menina), papéis com letras de músicas, recortes de revista (por incrível que pareça, não eram de homens bonitos; geralmente eram recortes sobre matérias científicas ou fotos de bichinhos), e de vez em quando algumas moedinhas. Demorou séculos para aquela carteira ver a primeira nota, que foi de um real mesmo. E mais tempo ainda para ver uma quantia maior do que dez reais, que durou muito pouco e foi gasta comprando um presente para um professor por quem eu era apaixonada.
Então, aos dezessete anos, eu estava no terceiro ano e ia prestar vestibular. E, em uma lógica de pensamento muito ridícula e tipicamente adolescente, eu resolvi que uma pessoa de dezessete anos, quase uma adulta, não poderia ir fazer uma coisa tão importante quanto um vestibular levando uma carteira do Piu-Piu. Eu continuava sem nenhum dinheiro, mas já tinha documentos, então queria levar uma carteira mais séria para mostrar ao mundo inteiro que eu já era adulta.
Não me lembro como foi o processo de adquirir a nova carteira (sim, eu me lembro de quando comprei minha primeira carteira ainda criança, mas não lembro nem se comprei ou ganhei a segunda, aos dezessete). Mas era uma carteira muito bonita, mais cara e definitivamente "de adultos". Dei a carteira do Piu-Piu para a minha irmã, e passei a usar a nova. Até que...
Até que, há mais ou menos quatro anos atrás (ou seja, quatro anos após ganhar essa nova carteira), ela começou a estragar. E há uns três anos se tornou inutilizável: os compartimentos de plástico onde ficam os documentos rasgaram, o fundo dela abriu, a presilha que a fechava soltou. Eu tive que aposentá-la, e como carteiras são caras, fiquei bastante tempo sem comprar uma nova. Até que ganhei uma de aniversário, há dois anos atrás.
Essa nova também era muito bonita. Mas dessa vez, com apenas um ano de uso começou a estragar da mesma forma que a outra. Eu ainda a uso, mas se torna cada vez mais difícil evitar que as coisas caiam dela, e logo terei que aposentá-la.
E tudo isso é para dizer que a carteira de 1,99 do Piu-Piu, que a Vitória criança ganhou há treze anos atrás, continua firme e forte e inteira. Não tem um rasgo, um pedacinho faltando, nada. Minha irmã a usa até hoje, sem problemas. E ela tem mais compartimentos (e compartimentos mais úteis) do que as outras duas carteiras caras e "de adultos" que eu tive depois dela. A cada vez que eu olho para ela, lágrimas me vêm aos olhos e me pergunto porquê a abandonei. Já tentei convencer minha irmã a devolve-la, mas foi inútil.
Está decidido. Minha próxima carteira será a mais infantil e barata que eu conseguir encontrar. É provável que assim ela dure uns trinta anos.

* * * * *

Escrevendo isso, eu me lembrei que quando tinha dez anos, eu tinha uma roupa do Piu-Piu. Era uma camisetinha branca com o Piu-Piu bordado, e um shortinho azul com ele bordado no bolso. Era muito bonitinha.
A usei até que não entrasse mais em mim.
Talvez até um pouco depois disso.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Quem É Você?

Eu estava em uma festa. Era o tipo de festa em que pessoas como eu vão por algum motivo aleatório e enquanto estão lá ficam o tempo todo se sentindo alienígenas: tocava axé, forró e coisas do tipo, tinha cerveja para todos os lados, e em certo momento os homens começaram a tirar a camisa e a dançar mais do que as mulheres. O tipo de festa que quem gosta de rock, não bebe cerveja e não sabe dançar fica olhando e pensando "que lugar é esse?".
Mas apesar disso, eu, que sou uma pessoa sempre alegre e positiva, estava me divertindo. Comecei a dançar - ou melhor, fingir que dançava - com um amigo meu, e nessa hora um cara que eu não conhecia chegou perto da gente e deu um tapinha no ombro do meu amigo, falando:
-- Isso aê rapaz, pegando geral heim!
Nós dois começamos a rir. Pela intimidade com que ele falara com o meu amigo, eu achei, obvio, que eles se conhecessem, por isso entrei na brincadeira e falei:
-- Isso aí, ele tá me pegando. Mentira cara, ele é meu irmão.
Não sei direito porquê falei isso, mas acho que pensei que era mais fácil do que tentar convencer ele de que éramos só amigos. Todos riram, e o cara falou "Po, é mesmo? Foi mal!", e eu "Não, tudo bem". Ele foi embora, e eu ia falar para o meu amigo "depois você fala pra ele que eu tava brincando", mas antes que eu dissesse, meu amigo falou:
-- Eu nunca vi esse cara na minha vida.
Fiquei olhando para ele com uma cara de "como assim?". Imaginem uma pessoa chegar falando com outra como se fossem amigos de infância, e você não tem a menor ideia de quem ela é. A última vez que lembro disso acontecer foi no maternal.
Coisas estranhas acontecem nessas festas.

* * * * *

Eu estava em uma festa, do mesmo gênero da outra. Já era fim de festa e as pessoas estranhas estavam ainda mais estranhas. Por algum motivo misterioso, eu estava conversando com um cara que (mais misteriosamente ainda) se "apaixonou" por mim. Ele me fez declarações de amor, me pediu em casamento e disse que ficaria comigo pelo resto da minha vida (mas em nenhum momento perguntou meu nome, e não tenho certeza se perguntei o dele). Como eu estivesse em dúvida quanto ao pedido de casamento, ele me pegou pela mão e disse que ia me apresentar para todas as pessoas que eram importantes para ele. Me levou até um grupo de rapazes, e se seguiu o seguinte diálogo:
-- Aqui, essa é a minha noiva.
-- Sério? - eles me cumprimentaram - Que legal cara.
-- A gente se ama muito. A gente vai casar.
-- Sério? Nossa que ótimo. - um dos caras virou para mim - Olha, pode casar com esse cara que ele é muito gente boa. Você vai ser muito feliz.
Diante de tantos argumentos, acabei aceitando o pedido de casamento. Em uma hora q ele saiu para pegar cerveja e me deixou sozinha com os outros meninos (que começaram a me fazer propostas de casamento também), eu perguntei se eles estudavam juntos. Aí eles disseram:
-- Eu nunca vi esse cara na minha vida.
Dessa vez não perguntei "como assim?" porque já estava me acostumando com isso. Acabou que meu "marido" demorou para voltar e me casei também com um dos rapazes. Ele descobriu, mas no final ficou tudo bem, afinal eram todos amigos de infância. Mesmo que nunca tivessem se visto e nunca mais fossem se ver.
Coisas muito estranhas acontecem nessas festas.

* * * * *

Eu ia contar ainda sobre outra festa, em que todas as meninas começaram a dar selinhos umas nas outras e eu fui discriminada por não querer participar da "brincadeira", mas é desagradável demais e não entra no tema de "quem é você?", então deixa pra lá.
Definitivamente, coisas muito estranhas acontecem nessas festas.

* * * * *

Por que eu vou nessas festas?

terça-feira, 30 de julho de 2013

Matar ou Não Matar, Eis a Questão

Quem acompanha este blog (alguém acompanha este blog?) e/ou o meu outro blog já deve ter percebido que eu tenho algumas opiniões favoráveis à certos tipos de violência em alguns contextos. É claro que existem casos e casos, mas geralmente não sinto peninha quando um bandido leva uma bala na cabeça, ou quando vejo uma notícia do tipo "adolescente é morto em baile funk". Mas há algum tempo atrás, conversando com algumas pessoas, me foi colocada a seguinte situação: um ladrão entra na sua casa e ameaça sua família, e você tem uma arma e tem a chance de mata-lo se quiser, o que você faria?
Minha resposta foi imediata: eu o mataria. Não pensei antes de responder, e mesmo pensando, minha resposta não mudaria. Mas para a minha surpresa - porque eu achava que o grupo com quem eu conversava tivesse uma opinião parecida com a minha - as pessoas ficaram bastante perturbadas com o que eu disse - ou talvez com a forma tranquila e sem remorso como eu disse aquilo. Seguiu-se um diálogo mais ou menos assim:
-- Mas se você tivesse condições de impedir ele de te fazer mal só ferindo ele, você ia escolher ferir ou matar?
-- Matar.
-- Mesmo que não fosse necessário?
-- Não. Mas se fosse necessário, eu o mataria mesmo que pudesse existir outra forma de me livrar da situação.
-- Mas será que na hora você teria coragem de verdade?
Mas será que na hora você teria coragem de verdade? Mas como é que eu vou saber? A gente só sabe como vai reagir a uma situação quando passamos por ela. Pode ser que na hora eu entrasse em pânico e não tivesse coragem. Pode ser que, mesmo que matasse o infeliz, ficasse me remoendo de culpa pelo resto da vida. Tudo o que posso dizer é que acho que não me importaria em matar alguém se precisasse, e definitivamente não vejo problema nenhum em tomar medidas extremas para se defender ou defender alguém.
Algumas pessoas me questionam sobre a questão do certo e errado. É certo matar um criminoso? É certo matar uma pessoa que te oferece risco? É certo que exista pena de morte? Eu não sei se é certo, e mesmo que diga minha opinião, de que ela vale? Tudo o que posso dizer é que acho que existem coisas que estão muito além do certo e errado.
Vamos colocar a situação hipotética de que um cara qualquer fizesse alguma coisa muito ruim comigo ou com alguém que eu gostasse (não vou ficar procurando exemplos, usem a imaginação). Vamos supor ainda que de alguma forma esse cara caísse nas minhas mãos e eu tivesse a opção de a) entregar ele pra polícia inteirinho; b) entregar ele pra polícia com alguns pedaços faltando, afinal um braço ou uma perna a menos não é algo tão ruim; ou c) matar ele, com boas chances de não ser presa. Eu posso dizer com absoluta convicção que escolheria a alternativa c. Não é que eu ache "certo" matar por vingança. Não acho. Também não acho que é papel da polícia fazer execuções sumárias, como muitas vezes acontece. Mas eu faria, porque é o que precisaria fazer. É o que precisaria para me sentir bem, para fechar o assunto etc. Não é mais uma questão de moral. Sei que existem pessoas que abraçam o assassino da filha e dizem "eu te perdoo", e acho que essa pessoa está em um grau de evolução muito superior, mas eu não consigo fazer isso.
Porque algumas coisas vão muito além de certo e errado. Algumas coisas são pura questão de justiça. Do que você sente que precisa ser feito.

* * * * *

Mas tem uma coisa que eu não faria: mandar matar alguém. Se for me sujar, então que suje apenas as minhas mãos. Se não tiver como fazer, ou se tiver medo de fazer, ou simplesmente não for capaz, então não vou envolver terceiros.
Por isso que não sou a favor da pena de morte. Assassinato é uma questão pessoal demais, entre quem mata e quem morre. Matar oficialmente é tirar o direito à vítima de ver o rosto de seu assassino.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Só Mais um Dia na Cidade

Era meio da tarde e eu estava voltando a pé para casa, ouvindo música e pensando em coisas aleatórias, quando avistei duas crianças mais a frente pedindo esmola em uma casa. Eram crianças pequenas - pequenas até demais, a mais velha não parecia ter mais de sete anos - e estavam sujas, usando roupas rasgadas, a típica cena deprimente de cidade grande. Eram um casal, e a menina era uns dois anos mais velha do que o menino. Provavelmente irmãos.
Aquela cena me irritou profundamente, como sempre acontece nessas situações. Provavelmente, pensei, eles estavam ali pedindo esmolas a pedido de algum adulto. Provavelmente não ficariam com nada do que conseguissem. Mesmo que ficassem com algumas moedas, muito provavelmente as usariam para comprar drogas ou coisa do tipo. Eles começam cedo, essas crianças de rua. Foi assim que eu pensei, quando os vi, logo à frente.
Eu continuei andando, e tentei desviar deles, fingir que não tinha visto, que estava com pressa, mas foi inútil. Os dois vieram para perto de mim, e a menina já foi estendendo as mãozinhas e pedindo dinheiro - qualquer dinheiro moça, pode ser dez centavos, cinco centavos. A primeira coisa que reparei foi que as mãos dela eram minúsculas e estavam imundas. A segunda foi que ela era tão pequena que eu poderia levantá-la só com uma mão, e o menino era menor ainda. E a terceira coisa que reparei foi que o menino carregava uma sacola com dois pães murchos e uma maçã meio estragada, provavelmente doações.
Eu não gosto de crianças. Não tenho nada contra as crianças, mas não tenho jeito com elas, não sei conversar, ou como lidar. São bichinhos imprevisíveis, e não gosto de coisas que não posso prever. Por isso, ser abordada daquela forma por crianças, ainda mais me pedindo dinheiro, foi algo que me irritou muito. Tive vontade de dar uma bronca nelas, dizer coisas como eu sei que você vai comprar cigarro com isso ou cadê sua mãe? Quem te mandou vir pedir esmola?, mas não disse nada disso. Só falei "não tenho dinheiro não, tá?", com um ar meio impaciente, e continuei andando. As duas crianças continuaram me seguindo, e novamente foi a menina quem falou: "você pode então dar alguma coisa pra gente comer? Pode ser coisa velha mesmo".
Aquilo me pegou de surpresa e me fez sorrir. Então eu estava enganada, eles queriam mesmo o dinheiro para comprar comida. Nem todas as coisas no mundo são ruins, afinal. Falei que tinha comida sim, mas que eles teriam que esperar ali em frente (estávamos já em frete à minha casa), enquanto eu pegava algo para eles.
Entrei em casa - nessa época eu morava em uma república - e fui futucar a geladeira do meu quarto. Peguei uma pera que eu havia cortado mas não comera, e que iria acabar estragando. Como eles eram dois, peguei outra pera, essa inteira. Tinha pouco menos da metade de um pacote grande de pão de forma, e como só pão não é muito legal, peguei um pouco de queijo e mortadela que estavam em uma bandeja e fiz alguns sanduíches. Peguei também duas bananas e um pacote de biscoito pela metade. Coloquei tudo em uma sacolinha, e levei para eles.
Em nenhum momento, enquanto pegava essas coisas, parei para pensar no que estava fazendo. Eles só tinham me pedido comida, e como sei que eles não deviam comer com muita frequência, atendi ao pedido deles da melhor forma que pude. Em nenhum instante me passou pela cabeça a possibilidade de dar um pão murcho, um resto de comida ou alguma coisa estragada para eles. Eu estava tão alheia ao que estava acontecendo, que a reação deles me pegou completamente de surpresa.
Eu entreguei a sacolinha para eles e falei: "Tem uns sanduíches de pão com queijo e mortadela aí. Tem também umas frutas". Vi que a menina olhava as coisas meio perplexa, e complementei: "Tem banana, tem pera...", torcendo para que eles gostassem de fruta e não jogassem tudo no primeiro lixo que vissem.
A menina soltou uma exclamação (eu nunca tinha entendido essa expressão até presencia-la) e disse "Pera!", com o mesmo tom em que eu diria "Ouro!". Olhou para mim, olhou para as frutas, olhou para mim de novo. Abriu a outra sacolinha, tirou um sanduíche, olhou dentro e falou "É queijo mesmo!". O menininho não quis saber de admirar as coisas, e começou a comer um sanduíche. A menina olhava de mim para as coisas com a expressão mais maravilhada que eu já vira. Ficou repetindo "obrigada, moça!" um milhão de vezes, enquanto o menino falava "eu nunca comi pera" e ela "eu também não!".
Eu não gosto de crianças.
Mas por algum motivo, me deu uma vontade enorme de pegar aqueles dois, levar para dentro da minha casa, e não deixar eles saírem nunca mais.
"É pra vocês isso", eu disse. "Não deixa ninguém tomar de vocês". Porque eu sei que, se crianças mais velhas encontrassem eles com aquelas coisas, iam tentar tomar deles de todas as formas, e eu não tinha como impedir isso. A menina disse "Pode deixar", agradeceu de novo, e os dois saíram dali praticamente dando pulos de alegria. Eu entrei em casa sem saber se ria ou chorava.

* * * * *

Isso foi há alguns anos. Muitos dias quentes e frios se passaram, muita chuva caiu, e fico pensando naqueles dois. Se eles têm alguém que dê uma pera para eles. Ou pelo menos um sanduíche. Se hoje, enquanto está chovendo, eles estão embaixo de um teto, dormindo embrulhados em um cobertor.
Fico pensando em como é possível que alguém olhe para aqueles dois e não sinta nada. Ou como é possível que uma criança tão pequena, suja, maltratada, te implore um pedaço de pão e você dê a comida que estava prestes a jogar no lixo. Ou como alguém pode gastar uma grande quantia em tratamentos para engravidar, enquanto aqueles dois precisam tanto de alguém que os pegue no colo e cuide deles.
Eu não gosto de crianças, sabe. Mas eu queria poder pegar essas crianças e fazer com que elas não tivessem que passar por isso. Eu não sei dizer o sentimento que tenho quando vejo essas crianças. Como é possível que alguém não sinta o mesmo? Como é possível que eu, que não tenho nada, dê tudo o que tenho por essas crianças, e quem tem muito não dá nada? Como é possível que alguém tenha filhos, enquanto tem tanta criança abandonada pelo mundo?
Imagine o maior frio, a maior dor e a maior fome que você já sentiu. Não é nada, comparado ao que essas crianças sentem.

* * * * *

Se um dia eu tiver dinheiro suficiente, uma coisa que faço questão de fazer é dar abrigo ao maior número de crianças que conseguir. Não serei uma mãe para elas, porque não sei cuidar nem de mim mesma, quanto mais dos outros; mas se elas vão sofrer, então que soframos juntas.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Primeiras Aventuras no País do Álcool

Eu tinha treze anos, Luli tinha doze. Era uma festa do Dia do Trabalhador, e eu adorava essas festas: começavam de dia e iam até tarde - ou o que era tarde para mim naquela época - tinham muita comida, muita gente, muita bagunça e eram uma ótima oportunidade de fazer coisa errada.
Não me lembro há quanto tempo estávamos na festa, mas provavelmente havíamos chegado de tarde, e já era noite. Estávamos correndo atrás de algum menino (não me lembro qual, provavelmente mais de um) quando alguém (provavelmente eu) teve a brilhante, a genial ideia de fazer a coisa mais louca e proibida que conseguíamos imaginar: beber uma cerveja.
Nós nunca havíamos sido um exemplo de bom comportamento, mas éramos bastante inocentes. Hoje, a maioria das meninas de treze anos já tem um ou dois filhos, mas naquela época as coisas eram diferentes. Para mim, que nunca havia provado nada que tivesse álcool, aquela cerveja seria muito mais do que uma cerveja; seria um passo rumo a um mundo proibido, o mundo dos "mais velhos", o mundo da contestação e da rebeldia.
Decisão tomada e dinheiro arrumado (não tenho a menor ideia de onde o dinheiro veio), vinha agora o grande problema: como comprar a cerveja? Não só éramos menores de idade, como éramos muito menores de idade. Além do mais, meu pai era conhecido no bairro inteiro. E se o moço do bar se recusasse a vender para a gente? Se nos desse uma bronca? Se contasse para o meu pai? Eu já imaginava um "você não tem vergonha nessa cara menina?" vindo do cara que vendia a cerveja, e meu pai ou meus tios brotando do nada ali e me carregando para casa sob ameaças.
Ficamos paradas próximo ao vendedor de bebidas, tensas, falando "vai você! Não, você!" uma para a outra. Devemos ter ficado uns bons minutos ali, e tenho a impressão de que as pessoas ao redor estavam se divertindo assistindo àquelas duas crianças quase morrendo para comprar a primeira cerveja. Luli usou o argumento de que eu era mais velha, eu usei o argumento de que ela parecia mais velha. Ficamos nesse empurra-empurra até que decidimos: "vamos juntas!". E fomos.
Chegamos no balcão, suando frio. O vendedor olhou para nós com um ar ameaçador. Nós tremíamos. Mostramos o dinheiro e dissemos juntas "Eu quero uma cerveja!". Eu estava tão nervosa que via a cena em câmera lenta. O vendedor disse, e suas palavras ecoaram em meus ouvidos:
"Skol ou Brahma?"
Nós duas tínhamos tanta certeza do esporro que viria, que ficamos sem ação. Demoramos um pouco para entender o que ele havia dito, até que uma de nós disse "Brahma", aleatoriamente. Ele entregou a cerveja, nós pagamos e saímos dali quase correndo.

* * * * *

Beber a cerveja foi outra novela. No primeiro gole, eu fiz tanto drama que parecia estar prestes a beber algo potencialmente explosivo. Acho que tinha medo de ficar instantaneamente bêbada. Peguei um canudinho (!), molhei na cerveja, coloquei uma gota no dedo e provei. Não achei ruim nem bom (como alguém poderia achar qualquer coisa provando uma gota?), então tomei um gole - de canudinho - e aí sim, achei horrível. Insisti em beber mais um pouco, mas quem bebeu a maior parte foi a Luli.
Detalhe: na volta para casa, meu pai foi me buscar de carro. E qual foi a primeira coisa que eu fiz quando entrei no carro? Foi contar sobre a cerveja, claro! Eu estava tão empolgada que nem me importei com a bronca, só queria que o mundo inteiro soubesse que eu era uma adolescente rebelde que bebia cerveja. Meu pai não me deu bronca (ele deve ter rido muito de mim), mas me deu aqueles conselhos básicos que ninguém segue, sobre não beber e etc.

* * * * *

Se hoje eu visse alguém vendendo bebida para duas crianças tão novas, acho que eu daria uma surra no cara.

* * * * *

Acho que eu empolgada por "ter bebido e não ser mais criança" era a imagem clássica da criança feliz.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Sakura Cardcaptor - Pensamentos Pós-Infância

Há muito tempo eu venho querendo escrever sobre Sakura Cardcaptor. Esse foi um dos animes mais marcantes na minha vida; o assisti no final da minha infância, por volta dos treze anos, e era fanática por ele ao nível do exagero. Mas não vou falar sobre minha paixão louca por ele, nem sobre o lado fofo do anime. Vou falar sobre aquelas coisas que, aos treze anos, eu jamais perceberia, ou só percebia de forma muito superficial. Vou falar sobre o lado "estranho" de Sakura Cardcaptor.
Em primeiro lugar, desnecessário dizer, esse é um anime infantil. Mas os japoneses têm um conceito bem, digamos, diferente do que é ou não é infantil (tanto que vários animes que para eles não têm nada demais acabam tendo cenas censuradas quando chegam no ocidente). Embora de uma forma bem discreta (tanto que eu não percebia quando era criança), Sakura tem elementos bastante bizarros que me deixaram ligeiramente perturbada quando revi o anime e reli o manga depois de adulta.
Primeiro, o elemento estranho mais "famoso" de Sakura: o relacionamento Yukito-Touya. Até eu, sonsa que era, percebia que tinha alguma coisa ali. O manga é mais explícito nisso do que o anime, mas em qualquer um dos dois, percebe-se claramente que os dois amigos já começam a história com um sentimento que vai muito além da amizade, e acabam a história como namorados. No manga, desde muito cedo Touya demonstra de forma bastante clara que é apaixonado por Yukito; este, por sua vez, revela verbalmente seus sentimentos para Sakura, em uma cena em que ela pergunta se ele gosta do irmão dela e ele confirma.
Mas eles não são os únicos personagens "gays" (entre aspas, porque a forma como é mostrado esses relacionamentos é algo tão peculiar, que parece mais relacionado a "amor entre almas" do que a homossexualismo).
Tomoyo é apaixonada por Sakura, e no manga ela diz isso de forma quase explícita, em uma cena em que as duas dizem uma para a outra "eu gosto muito de você", e quando a Sakura sai, Tomoyo pensa "é uma pena que a Sakura esteja pensando em uma forma diferente de gostar...". A mãe da Tomoyo parece ter sido apaixonada por sua prima Nadeshiko, mãe de Sakura, mas isso não é mostrado de forma explícita (embora seja muito fácil perceber). E Shaoran se apaixona a primeira vista por Yukito, embora depois se apaixone pela Sakura.
Essa parte "gay" do anime é mostrada de uma forma tão natural que chega a ser estranho. É fato que os orientais lidam com questões homossexuais de forma um pouco mais tranquila do que nós, mas não tanto assim, e se alguém assistir Sakura achando que lá é assim que as coisas acontecem vai ter uma grande decepção. Nesse ponto, acho que o anime quis passar a imagem de como o mundo deveria ser - você se apaixona por uma pessoa, não por um homem ou uma mulher. Gosto muito dessa visão (embora eu mesma só me apaixone por homens e acho que está muito bom assim).
Saindo dessa parte gay, temos a parte pedófila do anime. Beira o surreal o relacionamento entre Rika, amiguinha de Sakura, e o professor Terada, personagem que deve ser uns vinte anos mais velho do que ela. No anime, o relacionamento é mais discreto - parece ser apenas uma menininha de dez anos apaixonada por um professor - mas no manga a coisa fica muito séria, porque ela é correspondida. Sim, ela  é uma criança que gosta de um cara que deve ter idade para ser pai dela, e é correspondida! Existem várias cenas de encontros escondidos entre os dois, diálogos comprometedores, o cara chega a dar um anel de noivado para ela. É pedofilia aberta e explícita, e o mais bizarro é que o manga mostra isso como um relacionamento bonitinho!
Outra coisa muito estranha no anime (embora não tão questionável) é o relacionamento do pai da Sakura com a família da esposa. É mostrado que o casamento de Fujitaka e Nadeshiko foi contra a vontade da família dela, e que por isso eles perderam o contato com os parentes (os únicos parentes que aparecem são o avô e a prima de Nadeshiko, mas não se sabe se há outros). O bizarro começa quando a Sakura encontra, por puro acaso, com o bisavô, e ninguém diz para ela quem ele é! Ela faz amizade com ele como faria com qualquer velhinho simpático, e não tem a menor ideia de que ele é o avô de sua mãe.
Ainda na parte da amizade da Sakura com seu bisavô: como já foi dito, ela o conhece sem saber quem ele é. Mas isso não a impede, em nenhum momento, de agir com total imprudência em relação a ele, entrando em sua casa, lanchando com ele e trocando de roupa, quando ele pede que ela coloque uma roupa toda bonitinha (que era da mãe dela, mas ela não sabe). Gente, que tipo de educação o pai dessa menina deu para ela? Aos dez anos, se um completo estranho me chamasse para entrar na casa dele e me mandasse trocar de roupa, eu ia sair correndo gritando "tarado!". Fujitaka se mostra ainda mais relapso ao permitir que a filha ande por aí entrando na casa de estranhos (pelo que entendi, em um primeiro momento ele não sabia que a pessoa que dera a roupa para ela fora o avô de Nadeshiko).

* * * * *

Analisando a história de forma um pouco mais profunda, é interessante perceber que nenhuma família mostrada é "normal". Arriscaria dizer que tanto Sakura quanto Tomoyo têm famílias bastante problemáticas.
Da parte da Tomoyo, é bem fácil perceber um sério problema familiar ali. Em primeiro lugar, o pai de Tomoyo não só nunca aparece, como sua existência mal é citada. Acredito que ele e a mãe de Tomoyo vivem separados, mas o fato de a menina em nenhum momento mencionar a existência do pai mostra que temos aí uma relação nada boa. Além disso, sua mãe tem uma obsessão em tornar a menina parecida com sua amada prima Nadeshiko. Ou seja, temos aqui uma garotinha milionária que cresceu sem um pai (e na melhor das hipóteses, tendo um relacionamento neutro com ele), com uma mãe que a trata mais como uma boneca (ou um objeto que ela pode modificar livremente) do que como filha, e que acaba desenvolvendo uma super dependência por Sakura.
Sakura, apesar de aparentemente ter uma família linda e quase perfeita (um pai super dedicado, um irmão que a ama muito) também tem problemas familiares. Além de ter perdido a mãe quando era muito pequena, o pai de Sakura me parece um pouco ausente (ou talvez apenas relapso). Por exemplo, como eu já disse, há o episódio em que ela entra na casa de um "desconhecido" (o avô dela) e Fujitaka não demonstra a menor preocupação. Sakura fica sozinha em casa com muita frequência; lembrando que ela é uma criança de apenas dez anos, e que, pelo que a história conta, essa situação acontece há tempos. Há vários episódios em que ela sofre pequenos acidentes enquanto limpa a casa, e embora sejam cenas engraçadas, se pararmos um pouco para pensar logo percebemos que o que foi um tombinho bobo poderia muito bem ter sido algo bem mais sério. Não acho que os autores não pensaram nisso, e fico me perguntando o que eles queriam passar (sinto que há uma interpretação mais profunda sobre toda essa situação de Sakura, mas não consigo alcança-la).

* * * * *

Uma coisa engraçada é que Sakura parece fazer questão de mostrar famílias incompletas: Sakura perdeu a mãe e vive só com o pai e o irmão; Yukito não tem pais, e vive só com os avós (ou acha que vive); Tomoyo não tem pai. A família dos outros personagens não é mostrada, mas não é mostrada nenhuma família "completa".
Pensando nisso agora, que eu me lembre também não é mostrado nenhum casal adulto. Todo mundo se separou por algum motivo (morte, distanciamento ou motivos inexplicados). Embora o grande foco da história seja o amor, parece que todo o amor mostrado é sempre algo incompleto, impossível ou não correspondido.

* * * * *

Do meu ponto de vista, os personagens adultos de Sakura parecem bastante trágicos. Já as crianças parecem realmente ser a "última esperança", parece que o tempo todo elas estão à mercê de seguirem os mesmos passos dos adultos mas têm a chance de seguir um rumo melhor. Mas essa é uma interpretação bem subjetiva.

* * * * *

A personagem Sakura é tão fora da realidade que chega a ser absurdo. Tento me lembrar de como eu era aos dez anos, para poder fazer uma comparação, e realmente acho que não chegava nem perto de ser tão desligada e desinteressada da vida quanto ela. Ela não percebe os problemas relativos à própria família, não percebe que o irmão pode usar magia (mesmo Kero a alertando sobre isso), não percebe que ele sabe sobre as Cartas Clow, nunca pergunta nada para Tomoyo a respeito da família dela, não demonstra o menor interesse em saber nada sobre o passado de seus pais, não percebe que Yukito está desaparecendo, não percebe que Kero e Yukito compartilham segredos, não percebe que Shaoram e Tomoyo gostam dela, não percebe que Eriol esconde algum segredo, e se eu for rever todos os episódios vou fazer uma lista gigantesca de coisas que ela não percebe ou não demonstra interesse em saber. Mesmo em relação às Cartas, ela não demonstra o menor interesse em saber mais sobre elas, sobre as personalidades delas, ou sobre o passado de Clow.
Até que, em um momento mágico de extrema lucidez, quando ela se declara para Yukito e ele diz que gosta de outra pessoa, ela fala "é do meu irmão, não é?". Tudo bem que era fácil perceber, mas havia tantas coisas que eram fáceis de perceber e ela não percebia, que é um choque ver ela falar aquilo com tanta naturalidade.
Eu me pergunto em que momento Sakura começou a desconfiar que havia algo mais na amizade de Yukito e Touya. Quando ela tem a conversa reveladora com Yukito, a forma como ela fala aquilo é natural demais; fica claro que aquilo era algo que já havia passado pela cabeça dela tantas vezes que ela já havia se acostumado com a ideia. O curioso é que em nenhum momento anterior ela demonstra estar desconfiada de algo, o que talvez indique que ela não é tão distraída quanto parece. Pensando agora, talvez ela saiba (ou desconfie) de muito mais coisa do que o anime mostra.

* * * * *

Eu era apaixonada pelo Yukito.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Médicos

No geral, eu não gosto de médicos.
Acho engraçado pessoas que "têm" um médico, ou quem considera algum médico como um amigo. Médico é médico, e a maioria dos que eu conheço (infelizmente conheço muitos) são pessoas de quem quero a maior distância possível fora do consultório.
É estranha a visão de médico como uma "pessoa que salva vidas". Eu vejo mais como "pessoa que ganha dinheiro às custas do sofrimento dos outros". Porque, com raras e belas exceções, você pode estar morrendo na frente do médico, mas se não tiver dinheiro para pagar o atendimento, ele vai te deixar morrer.
Às vezes, ele te deixa morrer mesmo quando você paga o atendimento.
Eu tenho certa antipatia por médicos de qualquer tipo desde muito tempo. Por isso, fiquei bastante irritada com a comoção criada pela decisão do governo de trazer médicos estrangeiros para os lugares do Brasil em que nenhum médico brasileiro quer ir. Eu concordo plenamente que trazer médicos de fora não vai solucionar os problemas da saúde pública, mas alguém acredita que os médicos estão realmente preocupados com a saúde pública?
Se médico se preocupasse com a saúde pública, ele não te atenderia em menos de cinco minutos num posto de saúde.
Se médico se preocupasse com os pacientes, ele não diria coisas como "se quer atendimento melhor, vai no meu consultório particular".
Se médico se preocupasse minimamente com a vida de quem ele está atendendo, ele nunca daria um diagnóstico errado por pura desatenção.
O que eu tenho observado, em anos vagando como uma alma penada por consultórios, é que os médicos não têm, de uma forma geral, nenhum tipo de "ligação" com os pacientes. Olham para nós da mesma forma que eu olho para um computador quebrado: se der pra consertar eu conserto, se não der jogo fora. Ou: se me pagar eu conserto, se não pagar, se vira.
Por algum motivo misterioso, ser médico é ser elite. Conheço famílias de médicos, será que só eu que acho a ideia de todo mundo da família seguir a mesma profissão uma coisa no mínimo estranha? Alguém mais acha totalmente louco mais de trinta pessoas na mesma família terem a mesma vocação? Que sorte, né, meus pais são médicos, meus irmãos são médico e eu também nasci com dom para medicina! Incrível!
Médico é elite. E ser médico, em uma família de médicos, é uma obrigação. Agora imagine que tipo de médico irá se tornar uma pessoa que foi coagida a seguir essa profissão. Aliás, não precisa imaginar: entre em qualquer consultório e veja. Veja o péssimo atendimento, o ar arrogante, o dinheiro ganho às custas do sofrimento alheio. Isso é ser médico. Eu teria vergonha de seguir essa profissão, em uma realidade como essa.
Médicos de verdade, médicos que podem ter orgulho de ser chamados assim, são aqueles que realmente se preocupam com seus pacientes, sem se importar se eles têm ou não condições de pagar. São aqueles que vão lá para a Amazônia, no meio da floresta, usar o conhecimento que têm para ajudar o maior número de pessoas que puderem - e dane-se as más condições de trabalho. São aqueles que trabalham no SUS, mas fazem tudo o que podem para realmente atender e tratar os pacientes. São aqueles que dão a vida para salvar a vida dos outros, porque esse é dom que eles têm. Um médico de verdade é aquele que é capaz de qualquer coisa para salvar uma vida, sem esperar nada em troca.
Existem pouquíssimos médicos de verdade.
Esses outros, esses médicos que infestam as clínicas particulares e os postos de saúde, esses que deixam pessoas morrerem na frente deles e não fazem nada, esses que olham para você e vêem seu dinheiro, esses que se tornaram médicos pelo dinheiro e pelo status - esses, eu não respeito.

* * * * *

Desnecessário dizer, eu tive péssimas experiências com médicos, que incluem desde mal atendimento a erros médicos fatais; mas não falarei de nada disso, pelo menos não agora.

* * * * *

A quem possa dizer "Você quer que médico trabalhe de graça? Médico tem que sobreviver também", minha resposta é: problema seu. Se vai viver disso, então não seja hipócrita. Assuma que não dá a mínima para a vida dos seus pacientes, e que deixaria eles morrerem se não fosse pago. É bom deixar as coisas claras quando estamos falando de salvar a vida de alguém.

* * * * *

Aos poucos médicos realmente bons que existem: eu admiro muito vocês. Se eu gostasse um pouquinho mais de biologia e química, certamente teria escolhido essa carreira, e morreria de fome porque trabalharia de graça.

* * * * *

Pensando nisso agora, minha profissão é completamente inútil para o mundo.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Um Deus Particular

Eu leio um manga chamado 07-Ghost, e entre vários conceitos fantásticos que ele contém, um dos que mais gosto é o de que certas pessoas se tornam um "deus" para outras.
A princípio eu estava vendo isso apenas como uma peculiaridade da história - e, até certo ponto, um exagero: afinal, ninguém precisa de outra pessoa para viver, certo? Uma pessoa se tornar a razão da sua vida é algo um pouco extremo. Mas, pensando sobre isso, aos poucos comecei a achar que não só era algo tolerável, como era algo que realmente acontecia.
As vezes, a gente conhece uma pessoa que a princípio é apenas uma pessoa comum, mas de repente, as vezes sem uma razão específica, essa pessoa se torna especial. Se torna tão especial que queremos ficar perto dela o tempo todo, queremos conversar com ela, queremos ser ela. Admiramos as coisas que ela faz e os passos que ela dá, admiramos nela coisas que normalmente nem percebemos nos outros. Essa pessoa acaba se tornando uma espécie de ídolo, e quando percebemos, estamos lhe dedicando todo o nosso ser, de corpo e alma. Ela passa a ser o centro da nossa existência.
O ser humano precisa de deuses particulares. Ídolos.
Quando nascemos, nossos pais são nossos deuses. Eles detêm todo o poder, todas as decisões, e nós os amamos por isso. Eles representam carinho e proteção, são o símbolo do que queremos ser um dia. Possuem um conhecimento e uma sabedoria muito superior às nossas. Por boa parte das nossas vidas, nossos pais são como deuses para nós.
Mas então crescemos, e nossos deuses se tornam humanos. Nossos ídolos se mostram tão frágeis quanto nós. Passamos então a nos sentir novamente sozinhos, desprotegidos - perder um deus é como nascer sem que ninguém te segure, é se encontrar perdido em um mundo estranho. Passamos, então, a procurar um novo deus, algo ou alguém que substitua o vazio deixado por nossos pais. E aí muita coisa pode acontecer.
Podemos entrar para uma religião.
Podemos passar a usar drogas.
Podemos nos tornar fãs de alguém ou de alguma coisa.
Podemos nos apaixonar.
Mas as vezes, algumas vezes, nós encontramos alguém - um amigo, um amor, um desconhecido, tanto faz - que se torna tão importante, mas tão importante, que passa a guiar cada passo das nossas vidas. Não é um amor romântico, nem precisa de retribuição - essa pessoa, na verdade, não precisa sequer saber da nossa existência. Ficamos felizes apenas por ela existir.
A parte mais interessante disso é quando nós nos tornamos o deus de outra pessoa. Na maioria das vezes, demoramos para perceber que somos tudo o que importa no mundo para alguém. Afinal, damos pouca importância a nós mesmo, e parece quase impossível que outra pessoa nos ache o símbolo da perfeição.
Mas isso acontece. E acontece mais do que a gente imagina.
Ser admirado, ser amado, ser importante para outra pessoa - isso é uma responsabilidade enorme. Não por termos que ser perfeitos, mas sim porque temos que continuar a ser nós mesmos, e aceitar as consequências que nossos atos terão não só sobre as nossas vidas, mas também nas vidas de quem nos adora. Passamos a saber que, se falhamos em algo, podemos estar fazendo desabar o mundo de outra pessoa.
Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas.
Sendo o deus de alguém, você pode salvar essa pessoa. Porque você é uma das poucas pessoas que ela vai realmente ouvir. Porque ela vai tentar ser igual a você, vai tentar seguir seus passos. E porque, se você disser que a ama, você vai estar dando uma alegria a ela que em pouquíssimas vezes ela vai ter a chance de sentir.

* * * * *

Eu sei que sou o deus de algumas pessoas - sei de pelo menos três delas. E isso é uma coisa incrível mesmo.

* * * * *

Fico pensando e pensando, e não consigo descobrir quem é o meu deus. Talvez eu não tenha um no momento.
Eu ia dizer que não lembro de ter tido um deus durante a minha infância ou adolescência, mas acabo de descobrir que eu tive sim. Alguém que foi tão importante para mim, que ouso dizer que foi graças a ele que escolhi a profissão que tenho hoje, entre várias outras coisas.
Mas o meu "deus" mais marcante foi sem dúvidas o U2. Essa banda foi tão importante na minha vida, que dedico a ela tudo o que eu conquistei na minha vida entre os dezoito e os vinte e quatro anos. Sem esse meu deus particular, eu não seria metade do que sou hoje.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A Fita

Eu tinha aqui em casa uma fita de vídeo onde estavam gravados dois desenhos que marcaram profundamente minha infância: Dumbo e A Pequena Sereia. Nessa mesma fita também estava gravado um especial de fim de ano do Chitãozinho & Xororó, de 1992, e um pedaço de um filme de terror (acho que era O Mistério no Bosque) que eu não lembro direito, mas que parecia muito assustador.
Havia uma coisa bastante, digamos, inusitada em relação a essa fita: o desenho da Pequena Sereia não era dublado, e sim legendado. Acredito que havia sido gravado direto de uma outra fita, mas como isso foi feito eu realmente não tenho ideia - e tenho menos ideia ainda do porquê de aquele desenho estar legendado, em uma época em que encontrar fitas de desenhos legendados era bem difícil.
Eu assisti a essa fita milhares de vezes durante a minha vida. Assistia-a do início ao fim, mesmo as coisas gravadas não tendo nenhuma relação umas com as outras. A ordem era Chitãozinho & Xororó - Dumbo - Pequena Sereia - Filme assustador. Até hoje eu gosto de praticamente todas as músicas do Chitãozinho & Xororó que tocaram naquele especial (por sinal, é dificílimo encontrar cenas dele na internet, e as que existem estão com uma péssima qualidade), o que é uma confissão bastante polêmica, vinda de uma pessoa que tem preferencias musicais voltadas para o rock pesado.
Mas a grande coisa naquela fita era sem dúvida os desenhos. O do Dumbo não tinha o início gravado (talvez os primeiros cinco minutos), mas fora isso, eu sei as falas do desenho de trás para a frente. Mesmo. Me coloque para assisti-lo sem som, e sou capaz de dublar o desenho inteiro.
Uma das cenas que achava mais emocionante era aquela em que o Dumbo vai visitar a mãe dele, que está presa, e ela canta uma canção para ele. Eu fui procurar essa cena no youtube (sim, eu fui procurar uma cena de Dumbo no youtube) e fiquei chocada quando descobri que haviam mudado a dublagem, e que a letra da música estava completamente diferente. Revoltada, fui procurar pela primeira dublagem, e quando a encontrei, descobri que... Aquela não era a dublagem que eu conhecia! Na verdade, a dublagem que eu conhecia era a segunda versão, e foi feita uma terceira, bem depois. O motivo de um desenho ter sido redublado três vezes, eu realmente não consigo imaginar.
Essa cena do Dumbo com a mãe dele me tocava porque eu me colocava no lugar dele. Já pensou se fosse a minha mamãe que estivesse presa????, era o que eu pensava. E para completar a minha ligação emocional com a música, minha mãe a cantava para mim quando eu ia dormir. Pronto. Estava criada uma ligação emocional que faz com que, até hoje, meus olhos se encham de lágrimas quando a escuto.
Depois de Dumbo, vinha A Pequena Sereia. Ah, o primeiro filme legendado a gente nunca esquece. Eu não sabia ler, pelo menos não na velocidade necessária para acompanhar as legendas, mas via o desenho mesmo assim - e adorava. Ficava cantarolando as músicas, inventando uma letra em uma língua inexistente. Até hoje, odeio a versão dublada desse desenho.
A Pequena Sereia era, na época, meu segundo desenho preferido - o primeiro era Dumbo. Eu amava a cena em que ela cantava em uma caverna no fundo do mar, cheia de coisas do mundo de cima. Anos depois, fui procurar essa cena e... Odiei! A dublagem americana não mudou, o que mudou foi eu mesmo. Achei tudo no desenho horrível: os traços são feios, a Ariel parece um garoto, a letra da música é idiota. Podem me chamar de insensível, mas ao contrário de Dumbo, que eu amo até hoje, A Pequena Sereia é um desenho medíocre.
Curiosidade: há alguns anos atrás, lendo um livro de contos de fada originais (as versões medievais, não as "enfeitadas"), encontrei o conto original da Pequena Sereia. Fiquei chocada quando vi que era completamente diferente da história da Disney! Eu não culpo a Disney por não querer uma história melancólica e triste (criança nenhuma iria gostar daquilo), mas saibam que o desenho é apenas vagamente baseado na história original. No conto, aquela bruxa do mar não é má, o príncipe não se apaixona pela sereia, ela nunca recupera a voz, ele se casa com outra e ela morre no final.

* * * * *

Do filme, não lembro quase nada. Só sei que tinha uma mansão no meio de uma floresta, acho que uma criança sumia, e tinha uma música assustadora.
Eu tinha muito medo de assistir sozinha.
Mas adorava.

* * * * *

Eu sei que em alguma fita eu tinha o filme ET gravado, mas não sei se é a mesma fita.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Cachorros X Gatos

Em um dia qualquer, eu e várias pessoas estávamos conversando sobre nada, quando alguém disse que não gostava de gatos. Isso, na hora, me ofendeu um pouco: afinal, eu sou um gato, ou é assim que eu imagino meu daemon. Desde que comecei a pensar em que tipo de animal eu seria, eu sou um gato.
Quando eu era adolescente, eu tinha a adolescentesca mania de criar e-mails com nomes ridículos, e todos tinham "gatinha" ou "cat" (essa é a hora em que eu abaixo a cabeça e saio da sala, constrangida). E todo mundo achava, de forma totalmente compreensível, que eu estava fazendo algum tipo de alusão à minha beleza física (se bem que, no meu caso, seria uma referência muito irônica, eu não era uma adolescente muito bonita). Só que o motivo passava a quilômetros disso: o motivo de eu usar palavras similares a "gato" em e-mails ou coisas referentes a mim é que eu era, em personalidade, como um gato. Até miava de vez em quando.
Gatos são animais ariscos e eu sou bastante arisca, a não ser quando tenho interesses ocultos em permitir a aproximação de alguém. Gatos não gostam de ser tocados, e eu também não. Gatos conseguem passar despercebidos, e eu também. Gatos chamam a atenção quando querem, e eu também. Gatos são maliciosos e vingativos, e eu também. Gatos preferem ser solitários, e eu também. Gatos são independentes, e eu também. Gatos são interesseiros, e confesso que em certo aspecto, eu também.
Poderia fazer uma lista gigantesca de semelhanças entre minha personalidade e a dos gatos, mas acho que já deu pra entender.
Uma coisa que acho muito engraçada é que a maioria das pessoas que não gosta de gatos ama cachorros. Acho que isso diz muito sobre a personalidade da pessoa. Na mesma conversa, nós chegamos a algumas conclusões sobre a personalidade dos cachorros (aviso logo que eu também os adoro, já tive um cachorro e o amava muito): eles são, geralmente, burros. Só isso. São amigos, carinhosos e se ligam afetivamente aos donos; mas são burros. Gatos são interesseiros, e não mantém uma ligação afetiva muito profunda; mas são espertos e têm maldade. Cachorros são tão inocentes que se você começar a maltratar seu cachorro, ele vai continuar do seu lado, sofrendo. Agora, experimente dar um único pontapé em um gato: ele nunca mais vai aparecer na sua frente.
Eu sou uma pessoa que não tem muita paciência com seres frágeis e inocentes no geral. Falando por mim mesma, eu tenho uma aparência externa bastante frágil, mas se você me encurralar em um canto, sou capaz de te fazer em pedaços. Criaturas que dependem de outras para sobreviver, na minha visão egocêntrica, são um distúrbio da natureza. Eu não deixaria de ajudar um cachorro que está sofrendo nas mãos de um dono cruel, mas o tempo todo pensaria "seu burro, dá uma mordida na mão dele!".
Tem um filme, que nem vou procurar saber o nome porque todo mundo deve saber de qual se trata, no qual o dono de um cachorro morre e o cachorro passa o resto da vida esperando por ele na rua (esse filme é baseado em fatos reais). Eu simplesmente não consigo entender porquê todo mundo chora vendo esse filme. Em primeiro lugar, eu não choro vendo filmes, mas tudo bem, consigo entender quem chora vendo algo muito emocionante. Mas chorar porque o cachorro fica o resto da vida esperando o cara voltar? Meu único pensamento vendo esse filme era "cachorro burro! O cara não vai voltar, você não percebe? Se manda!". Eu não acho que falta de senso prático seja uma coisa emocionante. Não deixaria o cachorro morrer de fome, mas não derramaria lágrimas por ele.
Tente fazer isso com um gato. Tente deixa um gato sozinho por mais de uma semana (já vi isso acontecer mais de uma vez). Quando você voltar, não vai ter nem uma cartinha de despedida. Se você quiser o gato de volta, vai ter que colocar uma tigelinha de comida e torcer para ele por acaso estar passando por ali e ver. E é capaz de ele voltar e nem lembrar quem é você.
Nós somos seres práticos, eu e os gatos. Estamos ao lado de alguém enquanto temos conforto, comida e carinho; mas não firmamos contrato algum de fidelidade. Nada nos impede de ir dormir no sofá do vizinho quando quisermos. E a hora que você deixar de nos alimentar, a gente some e nunca mais volta.