quinta-feira, 25 de julho de 2013

Só Mais um Dia na Cidade

Era meio da tarde e eu estava voltando a pé para casa, ouvindo música e pensando em coisas aleatórias, quando avistei duas crianças mais a frente pedindo esmola em uma casa. Eram crianças pequenas - pequenas até demais, a mais velha não parecia ter mais de sete anos - e estavam sujas, usando roupas rasgadas, a típica cena deprimente de cidade grande. Eram um casal, e a menina era uns dois anos mais velha do que o menino. Provavelmente irmãos.
Aquela cena me irritou profundamente, como sempre acontece nessas situações. Provavelmente, pensei, eles estavam ali pedindo esmolas a pedido de algum adulto. Provavelmente não ficariam com nada do que conseguissem. Mesmo que ficassem com algumas moedas, muito provavelmente as usariam para comprar drogas ou coisa do tipo. Eles começam cedo, essas crianças de rua. Foi assim que eu pensei, quando os vi, logo à frente.
Eu continuei andando, e tentei desviar deles, fingir que não tinha visto, que estava com pressa, mas foi inútil. Os dois vieram para perto de mim, e a menina já foi estendendo as mãozinhas e pedindo dinheiro - qualquer dinheiro moça, pode ser dez centavos, cinco centavos. A primeira coisa que reparei foi que as mãos dela eram minúsculas e estavam imundas. A segunda foi que ela era tão pequena que eu poderia levantá-la só com uma mão, e o menino era menor ainda. E a terceira coisa que reparei foi que o menino carregava uma sacola com dois pães murchos e uma maçã meio estragada, provavelmente doações.
Eu não gosto de crianças. Não tenho nada contra as crianças, mas não tenho jeito com elas, não sei conversar, ou como lidar. São bichinhos imprevisíveis, e não gosto de coisas que não posso prever. Por isso, ser abordada daquela forma por crianças, ainda mais me pedindo dinheiro, foi algo que me irritou muito. Tive vontade de dar uma bronca nelas, dizer coisas como eu sei que você vai comprar cigarro com isso ou cadê sua mãe? Quem te mandou vir pedir esmola?, mas não disse nada disso. Só falei "não tenho dinheiro não, tá?", com um ar meio impaciente, e continuei andando. As duas crianças continuaram me seguindo, e novamente foi a menina quem falou: "você pode então dar alguma coisa pra gente comer? Pode ser coisa velha mesmo".
Aquilo me pegou de surpresa e me fez sorrir. Então eu estava enganada, eles queriam mesmo o dinheiro para comprar comida. Nem todas as coisas no mundo são ruins, afinal. Falei que tinha comida sim, mas que eles teriam que esperar ali em frente (estávamos já em frete à minha casa), enquanto eu pegava algo para eles.
Entrei em casa - nessa época eu morava em uma república - e fui futucar a geladeira do meu quarto. Peguei uma pera que eu havia cortado mas não comera, e que iria acabar estragando. Como eles eram dois, peguei outra pera, essa inteira. Tinha pouco menos da metade de um pacote grande de pão de forma, e como só pão não é muito legal, peguei um pouco de queijo e mortadela que estavam em uma bandeja e fiz alguns sanduíches. Peguei também duas bananas e um pacote de biscoito pela metade. Coloquei tudo em uma sacolinha, e levei para eles.
Em nenhum momento, enquanto pegava essas coisas, parei para pensar no que estava fazendo. Eles só tinham me pedido comida, e como sei que eles não deviam comer com muita frequência, atendi ao pedido deles da melhor forma que pude. Em nenhum instante me passou pela cabeça a possibilidade de dar um pão murcho, um resto de comida ou alguma coisa estragada para eles. Eu estava tão alheia ao que estava acontecendo, que a reação deles me pegou completamente de surpresa.
Eu entreguei a sacolinha para eles e falei: "Tem uns sanduíches de pão com queijo e mortadela aí. Tem também umas frutas". Vi que a menina olhava as coisas meio perplexa, e complementei: "Tem banana, tem pera...", torcendo para que eles gostassem de fruta e não jogassem tudo no primeiro lixo que vissem.
A menina soltou uma exclamação (eu nunca tinha entendido essa expressão até presencia-la) e disse "Pera!", com o mesmo tom em que eu diria "Ouro!". Olhou para mim, olhou para as frutas, olhou para mim de novo. Abriu a outra sacolinha, tirou um sanduíche, olhou dentro e falou "É queijo mesmo!". O menininho não quis saber de admirar as coisas, e começou a comer um sanduíche. A menina olhava de mim para as coisas com a expressão mais maravilhada que eu já vira. Ficou repetindo "obrigada, moça!" um milhão de vezes, enquanto o menino falava "eu nunca comi pera" e ela "eu também não!".
Eu não gosto de crianças.
Mas por algum motivo, me deu uma vontade enorme de pegar aqueles dois, levar para dentro da minha casa, e não deixar eles saírem nunca mais.
"É pra vocês isso", eu disse. "Não deixa ninguém tomar de vocês". Porque eu sei que, se crianças mais velhas encontrassem eles com aquelas coisas, iam tentar tomar deles de todas as formas, e eu não tinha como impedir isso. A menina disse "Pode deixar", agradeceu de novo, e os dois saíram dali praticamente dando pulos de alegria. Eu entrei em casa sem saber se ria ou chorava.

* * * * *

Isso foi há alguns anos. Muitos dias quentes e frios se passaram, muita chuva caiu, e fico pensando naqueles dois. Se eles têm alguém que dê uma pera para eles. Ou pelo menos um sanduíche. Se hoje, enquanto está chovendo, eles estão embaixo de um teto, dormindo embrulhados em um cobertor.
Fico pensando em como é possível que alguém olhe para aqueles dois e não sinta nada. Ou como é possível que uma criança tão pequena, suja, maltratada, te implore um pedaço de pão e você dê a comida que estava prestes a jogar no lixo. Ou como alguém pode gastar uma grande quantia em tratamentos para engravidar, enquanto aqueles dois precisam tanto de alguém que os pegue no colo e cuide deles.
Eu não gosto de crianças, sabe. Mas eu queria poder pegar essas crianças e fazer com que elas não tivessem que passar por isso. Eu não sei dizer o sentimento que tenho quando vejo essas crianças. Como é possível que alguém não sinta o mesmo? Como é possível que eu, que não tenho nada, dê tudo o que tenho por essas crianças, e quem tem muito não dá nada? Como é possível que alguém tenha filhos, enquanto tem tanta criança abandonada pelo mundo?
Imagine o maior frio, a maior dor e a maior fome que você já sentiu. Não é nada, comparado ao que essas crianças sentem.

* * * * *

Se um dia eu tiver dinheiro suficiente, uma coisa que faço questão de fazer é dar abrigo ao maior número de crianças que conseguir. Não serei uma mãe para elas, porque não sei cuidar nem de mim mesma, quanto mais dos outros; mas se elas vão sofrer, então que soframos juntas.

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