terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Amor

"Não existe o amor, apenas provas de amor".
Essa frase é de uma música dos Titãs. Quando eu era adolescente, eu adorava essa música. E gostava só por causa dessa frase.
Eu nunca fui muito romântica. Pelo menos não no sentido convencional. Eu sonhava, claro, com um príncipe encantado. Hoje ainda sonho que um dia o Bono de vinte anos atrás vai bater na minha porta, montado em um cavalo branco, e vai me pedir em casamento (meu deus, seria ridículo). Mas romântica de ficar suspirando pelos cantos, nunca fui.
Na época em que essa música fez sucesso, eu estava apaixonada por um menino um ano mais velho que eu. Nessa época, um ano era muita coisa: eu via ele como um homem adulto, embora ele tivesse uns dezesseis anos. Mas ao mesmo tempo tinha desenvolvido um conceito muito prático sobre o que é o amor: nada. Amor não existia, pelo menos não na minha cabeça. O que existia era uma mistura de sentimentos de atração, posse, carinho e dezenas de outros, que resolvíamos juntar em um sentimento só, o qual expressávamos das formas mais ridículas possíveis. Não existe o amor; existem provas de amor.
A palavra "amor" surge, com todos os seus significados, muito mais cedo na vida das meninas do que dos meninos. Meninos também amam, mas de uma forma primitiva. Meninas não: muito novas, elas já amam da mesma forma que vão amar quando forem adultas - a única diferença é que uma criança de cinco anos não tem a menor idéia do que fazer em relação a esse sentimento. E eu, mesmo não sendo uma "menina" típica - muitas vezes era confundida com um menino - também tenho lembranças antiquíssimas de estar apaixonada por alguém.
A lembrança mais antiga que tenho é de quando tinha dois anos. Eu estava andando em frente de casa, provavelmente sem o consentimento de minha mãe, e estava admirando os meninos na rua. Tinha um garoto - que não vou dizer o nome aqui porque ele pode ler esse blog e vai ficar com vergonha - por quem eu era completamente apaixonada. Ele era mais velho, praticamente um adulto - tinha uns sete anos - e eu podia gastar horas do meu dia apenas vendo ele. Gostava de correr atrás dele, fazia qualquer coisa para tocar nele. Gostava de ver ele e os outros meninos sem camisa. Com dois anos, eu morria quando via um menino sem camisa. Achava que não tinha nada mais bonito do que o corpo de um homem. Claro que não desenvolvia os pensamentos dessa forma: ficava apenas empolgada e pulando como uma louca quando algum menino maior, mais forte e sem camisa tentava me bater, e me segurava, me fazia cair... Eu era forte e muito alta em comparação às outras crianças da minha idade, então encontrar um menino mais forte do que eu era algo que me fascinava.
O tempo passou, eu cresci mais ainda. Continuei - continuo - achando que não existe nada mais bonito do que um homem alto, forte... Tá, vou parar. Vamos voltar para o amor.
Com dezesseis anos, eu era apaixonada por um professor. É quase uma regra que as alunas do ensino médio se apaixonem pelo menos uma vez na vida por um professor. Esse não era o mais bonito, nem o mais alto, muito menos o mais forte; mas era tudo o que eu queria, e eu amava ele. Inventava músicas para ele, mandava poesias para ele. Mas, apesar de me adorar e ser meu amigo, ele nunca quis nada comigo. Pensando nisso hoje, acho que foi uma coisa boa. Eu era muito criança na época, muito mais do que devia ser.
Recentemente, mexendo em umas coisas antigas, eu encontrei um caderno que usava como diário aos doze anos. Ali estava escrito, embaixo de uns rabiscos que parecem ser tentativas de fazer um desenho: "eu ia pedir 'me ajudem pelo amor de Deus', mas lembrei que não acredito nem no amor, nem em Deus".
Impactante, claro, principalmente vindo de alguém de doze anos que não deveria nem saber formular essa frase. Não me lembro de por que escrevi, não me lembro nem de ter escrito. Não sei por que eu queria pedir ajuda, também. Mas a frase, apesar de ser bastante forte, é muito exagerada. Eu realmente pensava assim naquela época. Eu odiava tudo e todos, as pessoas hipócritas que defendiam o amor quando na verdade tudo o que queriam era sexo, os mais hipócritas ainda que fingiam acreditar em Deus quando era mais do que óbvio que só lembravam de Deus quando era do interesse deles. Coisas como essa podem fazer borbulhar a cabeça de uma criança.
Há muito tempo atrás, quando eu fiz a primeira versão desse blog, eu escrevi um texto chamado Um Pouco Sobre o Amor, onde eu falo sobre o amor (não diga...), mas envolvendo várias coisas que estavam passando por mim naquela época. Não é exatamente meus pensamentos sobre o que é o amor: é mais uma coletânea de coisas que eu queria dizer a uma pessoa, em uma forma quase poética. Mas é um bom retrato do que se passava dentro de mim há quase quatro anos atrás.
Faz muito tempo que não me apaixono por ninguém. Muito tempo mesmo. É um pouco frustrante, isso. É divertido estar apaixonado e agir como um idiota sempre que vê aquela pessoa. Por outro lado, minha vida anda melhor assim. Não tenho tantos problemas quanto tinha antes, não me magôo mais tão facilmente.
Para amar alguém, você tem que estar disposto a se magoar. Quanto mais você gosta da pessoa, maior a chance de que ela te machuque. Você tem que saber perdoar, também. Eu tenho muitas dificuldades com isso. Perdoar é para almas elevadas, e não tenho certeza se sou uma delas.
E continuo achando que não existe amor.

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Esse texto é uma coletânea de pensamentos escritos em três épocas diferentes do ano de 2010.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

No ônibus - cenas

Estou em pé no ônibus. Dois caras no banco ao meu lado conversam.
-- Eu tenho que parar de pegar travesti, cara.
-- Eu já te falei pra parar. Isso não leva ninguém a nada.
-- Mas po, eu tinha parado aquela vez, mas as mulherzinhas mó difícil... E tem travesti que é igualzinho mulher, cara.
-- Mas não é mulher, véi. Sai dessa, não leva ninguém a nada.
-- To ligado. Mas eu vou parar sim. Eu vou casar, aí paro.
-- Vai casar com a (nome de mulher) mesmo?
-- Vou. Ela é meio puta, mas pelo menos é mulher, né? Aí eu paro de pegar traveco.

* * * * *

Estou no ônibus, sentada, no lado do corredor. No banco do outro lado, também do lado do corredor, tem um rapaz sentado. O banco ao lado dele, do lado da janela, está vazio. Um outro rapaz, que está em pé, pergunta se pode sentar.
-- Desculpa - diz o rapaz - eu to guardando lugar pra minha namorada. Ela vai subir logo ali na frente.
-- Ah, falou. Tranquilo.
Só que a essa altura, eu, que não tinha nada para fazer e fiquei observando as pessoas, já tinha percebido que aquele rapaz não era um rapaz. Era uma mulher. Era igualzinho a um homem, mas tinha seios. O homem que estava em pé e tinha pedido para sentar não tinha percebido ainda. Depois de alguns minutos, ele foi falar alguma coisa com o rapaz-garota e percebeu.
-- Ué - ele disse, em alto e bom som - tu é mulher?
Todo mundo já tinha percebido, menos ele. O cobrador abaixou a cabeça e começou a rir.
-- É, né. - disse o rapaz-garota, um pouco sem jeito.
-- Ué... Cara... - ele estava confuso.
-- Fazer o que. - o rapaz-garota deu de ombros, como se dissesse "eu não te culpo, meu filho, mas eu também não tenho culpa".
Dois ou três pontos depois, subiu a namorada do rapaz-garota. Era uma mulher mesmo, normal. Fiquei me perguntando se ela sabia que seu namorado não era um homem de verdade. Ela se sentou ao lado dele, os dois se beijaram, e seguiram viagem abraçados.
* * * * *

O ônibus estava tão cheio que eu não consegui passar da roleta. Fiquei, então, na frente mesmo, perto do motorista. E o motorista estava conversando animadamente com outro passageiro.
-- Tem que correr mesmo. - ele dizia - Um ônibus bom desses, vê se vou ficar andando a 60. Eu meto o pé mesmo. Já fiz mais de 100.
-- Mas aquele treco não fica apitando? - disse o passageiro, se referindo ao alarme que soa sempre que o motorista passa de 60 quilômetros por hora.
-- Ah, eu nem ligo mais. Vôo mesmo. Uma vez fiz do Terminal de Jacaraipe ao Terminal de Itacibá em cinquenta minutos.
Eu nunca fui até Itacibá, mas sei que, de ônibus, leva umas duas horas, mais ou menos.
-- Po, mas não pe perigoso correr assim?
-- Nada. Quando o carro é bom a gente corre mesmo. Passa por cima de tudo. Polícia não pára mesmo.
--- Mas e se tu bater?
-- Você acha que num carro desse tamanho alguém se machuca se bater? Não acontece nada não. Quem se ferra é os do outro carro, mas ninguém mandou não sair da frente, po. Eu saio buzinando, se não sair da frente eu passo por cima.
E riu.

* * * * *

O ônibus estava quase vazio. Eu estava sentada, e atrás de mim, estavam sentados um rapaz e um homem sem idade.
(Observação: sem idade são aquelas pessoas que podem ter entre vinte e setenta anos, e que você sempre se surpreende quando dizem a idade)
-- Eu sou de Goiania, sabe? - disse o homem.
-- Ah é? - o rapaz não parecia muito interessado.
-- Sou de Goiânia. Goiânia é linda, sabia?
-- É mesmo?
-- É sim. Você conhece a música de Goiânia?
-- Conheço não.
Eu conhecia, mas fiquei quieta.
-- Tem uma música de Goiânia. Você não conhece?
-- Conheço não.
-- Mas a música é linda. Linda mesmo.
-- É mesmo?
Pausa. O homem falou de novo.
-- Pra aonde você tá indo.
-- Pra lá pra baixo.
-- Lá pra baixo onde?
-- Depois de Carapina.
-- É longe, né?
-- É mesmo.
-- Muito longe, né?
-- É.
-- Mentira, não é longe não. - ele começou a rir - Longe é pra aonde eu vou. Você sabe pra aonde eu vou?
-- Sei não.
-- Eu vou pra Argentina. To indo pra lá agora. Lá pra Argentina.
-- É mesmo?
-- É sim. E sabe o que eu to indo fazer lá?
-- Sei não.
-- Eu to indo consertar um fogão. To indo consertar um fogão na Argentina.
-- É mesmo?
-- É sim. Agora você vê... Você vê, eu to indo lá na Argentina... Pra consertar um fogão.
-- Que coisa, né?
-- Pois é. To indo na Argentina pra consertar um fogão. E lá é longe, longe...
-- É mesmo?
-- É... Mas você não conhece a música de Goiânia?

* * * * *

Eu tinha acabado de subir no ônibus. Comigo, subiram umas seis ou sete pessoas, todas conversando muito alto e rindo. Eu sentei, eles ficaram em pé, próximos à porta.
-- Coloca aí, Vladiney (acho que é assim que se escreve). Coloca aquele funk lá dos moleques lá.
Um dos homens tira um celular do bolso, e coloca um funk para tocar, no volume máximo. As mulheres riem.
-- Esse é do bom! - uma delas diz.
-- Dança aí, dança aí! - fala um dos rapazes - Vamos dançar!
As mulheres começam a dançar funk, se esfregando na barra de ferro em frente à porta. Os homens riem e dançam junto. Um deles começa a cantar, e logo o grupo todo está cantando e dançando. O resto do ônibus assiste em silêncio, e a viagem prossegue.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Balões, torres e estrelas

Mais um pra minha (longa) lista de sonhos que merecem ser contados. Tive esse sonho no último sábado, enquanto dormia depois do almoço. Eu não preciso dormir profundamente pra sonhar, é incrível.
Não me lembro exatamente como o sonho começava. Eu estava no lugar em que morava quando tinha cinco anos, no quintal da casa da minha tia. Estávamos eu e minha irmã. E ela começava a contar sobre suas aventuras com um dos amigos dela, com quem, na vida real, ela costuma fazer coisas normais como ir na praia escondido para ficar simulando que são piratas e vão dominar o mundo.
Só que, no sonho, além de ir na praia, ela me contava que eles haviam conseguido um balão (não balão de aniversário, mas aqueles que levam pessoas em uma cestinha e são todo coloridos) e que tinham viajado nele:
"Foi muito legal, Vit! O Caio chegou com o balão e a gente ficou voando nele, e voamos pra lá, pra cima dos eucaliptos, e deu pra ver tudo, as árvores, o mar, tudo! Parecia que a gente ia cair no mar, mas o vento levou a gente pras árvores!"
Enquanto ela falava, eu ia vendo as cenas, dela e do Caio voando no balão, como se eu estivesse lá. E então eu estava mesmo lá, no balão com eles, e de repente começava a ventar muito forte, e o Caio tinha dificuldades para controlar o balão. Eu ficava com medo de que ele fosse para o mar, mas o Caio se pendurava do lado de fora e fazia o balão dar uma guinada e nós íamos para cima das árvores. Eu ficava pensando em como é que a gente ia fazer para pousar, e uma voz misteriosa disse que era só apagar o fogo que mantinha o ar do balão. Só que quando eu olhei, não tinha fogo nenhum, então eu não teria como fazer o balão descer porque ele voava sozinho, por mágica.
De repente, eu não estava mais no balão, eu voltara para o quintal daquela casa, e continuava conversando com a minha irmã como se nada tivesse acontecido.
"Mas Le, você não ficou com medo de voar no balão sozinha com o Caio? Vai que aquele troço cai!"
"Cai nada, Vit, o Caio sabia o que tava fazendo. Ele já andou de balão milhares de vezes, já foi até na Bahia de balão!"
"Mesmo assim, Le! Olha eu, por exemplo. O Brenno já me chamou pra andar de balão com ele várias vezes, com o pai dele e tudo, e eu nunca fui! E olha que ele sabe dirigir balões melhor do que o Caio"
"Ah, você é muito medrosa. Eu andei de balão com o Caio e não aconteceu nada, viu? Você também devia ter andado com o Brenno".
Então, eu já não estava no quintal da casa. Eu, minha irmã e várias outras pessoas (que eu não sei dizer quem eram) estávamos todos voando em um balão enorme, todo colorido. Estava ventando muito, e como eu tenho medo de altura, tinha que ficar agachada na cestinha do balão para não entrar em pânico. Mesmo assim, com o vento, o balão ficava virando, e uma hora todos ficamos pendurados do lado de fora, prestes a cair, e eu estava em pânico. Por sorte, o balão estava sobrevoando uma torre enorme, e nós conseguimos pular para lá.
Agora, já não tinha mais balão nem nada assim. Estávamos todos na torre, e alguém me explicou que aquela era uma torre-telescópio, ou seja, uma torre que era tão alta, mas tão alta, que não era preciso um telescópio para enxergar as estrelas, mesmo as mais distantes. Mas quando eu olhava para cima, as estrelas estavam completamente fora de foco, porque eu estava sem meus óculos. E eu percebia que a torre era pequena demais para caber tanta gente, e começava a ficar com medo de que ela acabasse desmoronando. Ela devia ter uns dois metros de diâmetro, e havia umas vinte pessoas naquele espaço. Parecia com a torre da Rapunzel que eu vi num livro há algum tempo.
Então, eu me encolhia em um canto (embora não houvessem cantos, já que era uma torre redonda) e ficava esperando aquelas pessoas irem embora. Mas um cara enorme, muito magro e muito alto, que no sonho era alguém que eu conhecia muito bem, me segurava e ficava me puxando, querendo que eu levantasse, e dizendo:
"Olha as estrelas, olha!"
E eu, "não, não!"
"Olha! Você não tá vendo as estrelas? Olha como elas brilham, dá pra ver direitinho!"
"Não, não, eu to sem meus óculos! Eu vou cair, eu vou cair!"
"Você não tá vendo aquela estrela lá? Olha aquela estrela!" - eu olhava para a estrela que ele apontava, mas não conseguia enxergar ela direito - "Eu escrevi uma coisa nela pra você! Você tá vendo?"
"Não, eu já falei que to sem meus óculos! Eu mal vejo a estrela, como vou ver o que tá escrito nela?"
"Mas eu escrevi, todo mundo tá vendo! Eu escrevi 'galo' pra você! GALO! Eu escrevi 'galo' naquela estrela só pra você!"
E realmente havia uma mancha na estrela que podia ser uma palavra escrita, mas eu não conseguia ler.
"Eu não consigo ver!"
"Galo! Podia ter sido pinto, mas eu escrevi galo! Olha o galo na estrela! GALO!"
E enquanto falava, ele ia me empurrando contra a mureta da torre, só que havia uma abertura nela com uma escada de corda para as pessoas poderem descer, e eu fiquei com medo de cair dali. E ele me empurrava, e eu pensava em descer pela escada, mas estávamos a centenas de quilômetros de altura, e eu fiquei com medo porque, como já disse, tenho medo de altura. E o cara ficava gritando "Olha a estrela! Eu escrevi galo na estrela pra você!", e eu ficava olhando pra cima, para a estrela fora de foco, tentando ver alguma coisa porque, se eu visse, não iria cair e talvez o balão aparecesse para me ajudar.
E então eu acordei.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O delicado equilíbrio das coisas

Se a Vitoria de hoje se encontrasse com a Vitoria de dezessete anos atrás, o que ela diria?

Essa pergunta estranha veio à minha cabeça ontem, no ônibus, quando voltava da universidade. Há dezessete anos atrás, eu tinha cinco anos. O que o "eu" de vinte e dois anos diria para o "eu" de cinco anos?
Minha primeira resposta foi: provavelmente, eu me daria um chute. Isso porque hoje eu não tenho muita paciência com crianças pequenas, muito menos com crianças que são como eu era. Mas depois fiquei pensando nisso. O que eu diria? Poderia dar algum aviso sobre o futuro. Algum conselho. "Vit, senta aqui no meu colinho. Olha, vou te dar um conselho: você nunca deve..."
Nunca deve o que? Do que eu me arrependo a ponto de desejar jamais ter feito? Ou o que aconteceu de tão ruim a ponto de eu gastar o meu tempo tentando convencer o meu "eu" do passado a tentar impedir? Ou o que eu deixei de fazer, mas faria se pudesse voltar atrás?
E foi nessa hora que eu percebi que essa pergunta era muito maior do que parecia. Não se tratava do que dizer ou não. Era muito mais do que um pedido de conselho. A verdadeira questão era: se você pudesse mudar o passado, o que você mudaria?
Eu já tinha pensado nisso algumas vezes, mas nunca com a seriedade com que pensei ontem. É incrível o que uma hora e meia dentro de um ônibus pode fazer com a nossa mente.
O que eu mudaria? Acontecem coisas ruins com todas as pessoas. Aconteceram coisas ruins na minha vida. Mas o ponto mais delicado era que, mudando algo ruim, algo bom poderia deixar de acontecer. As coisas que haviam acontecido de ruins eram tão ruins a ponto de eu abrir mão das boas?
E se, consertando a pior de todas as coisas, eu hoje não fosse quem eu sou? Se fosse só mais uma patricinha idiota, sem grandes planos e com nada na cabeça além de um cabelo alisado e pintado de loiro? E se nunca tivesse escrito minha primeira história, se jamais tivesse desejado ser escritora? Se não tivesse entrado na UFES? Se fazer Ciência da Computação jamais tivesse passado pela minha cabeça?
E aí eu percebi o quanto é delicado o equilíbrio entre tudo o que somos hoje e tudo o que nos aconteceu. Uma única mudança poderia destruir tudo. A vida de uma pessoa vale muito mais do que qualquer lágrima que ela tenha derramado. Todas as coisas boas precisam de coisas ruins para acontecerem.
Recentemente, aconteceram coisas muito boas na minha vida. Uma em especial foi tão boa, mas tão boa, que me fez ficar rindo sozinha no ônibus, como se fosse completamente louca, durante todo o caminho de volta da universidade. E naquela noite eu inventei uma frase fantástica para mim: uma coisa só acontece para mim se for muito boa; uma coisa só é boa se ela acontecer para mim. Eu voltei para casa olhando para o céu naquela noite, e juro que era o céu mais lindo que eu já tinha visto. De lá para cá, o céu de cada dia é sempre mais bonito do que o do dia anterior, e não existem dias ruins. E eu pensei em tudo o que me trouxe até aqui, todas as coisas boas e as coisas ruins. E ontem eu descobri que não existem coisas ruins.
É simples assim. Não existem coisas ruins. Não existe absolutamente nada de ruim na minha vida, seja agora, seja no passado mais distante. Existem coisas que aconteceram contra a minha vontade, coisas que eu quis consertar, coisas que me fizeram ficar triste; mas coisas ruins, nunca. As coisas são como elas precisam ser, e como você deseja que elas sejam. E não só para mim, mas para todo mundo. As pessoas seriam mais felizes se elas conseguissem ver isso. Se passassem uma hora e meia dentro de um ônibus, depois de um dia inteiro na universidade, e pensassem no que o "eu" delas de agora diria para o "eu" do passado.
Mas Vitoria, e aquelas vezes em que você passou dois dias sem comer porque não tinha dinheiro nem para comprar um miojo? Aquilo não foi uma coisa ruim? Claro que não. Primeiro, porque tem gente que passa muito mais do que dois dias sem comer. E segundo, aquela época me ensinou tanta coisa, mas tanta coisa, que acho que metade do que sou hoje eu me tornei graças a tudo aquilo. Mas Vitoria, e as pessoas que morreram? Não foi algo ruim? Não. As pessoas que me importavam, e por quem eu sofri, teriam que morrer antes de mim, e se não fosse naquela época, seria agora. E a dor que eu senti me fez crescer de um jeito que nada mais poderia fazer. Foi uma morte que me tirou da infância de vez e me jogou na adolescência, aos catorze anos. Eu não gostaria que ninguém morresse, mas como eu disse, as coisas são o que elas tem que ser. Isso não significa que elas sejam ruins; elas nos ensinam tanto, que a dor vale a pena.
Afinal, cheguei à conclusão de que, se me encontrasse comigo mesma aos cinco anos, eu não daria nenhum conselho nem nenhum aviso. No máximo, eu diria "você é a garotinha mais linda do mundo" e ficaria me vendo brincar, em uma época em que nada era mais importante na minha vida do que o presente imediato.

Porque todos os meus dias são iluminados, e na noite brilham todas as estrelas.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Coisas antigas e sonhos estranhos

Hoje eu tive um sonho estranho.
Pra começar, parecia que o sonho se passava no futuro, talvez uns dez anos no futuro. Por outro lado, eu parecia ser mais nova do que sou hoje. Estávamos eu, meus pais e minha irmã visitando o antigo lugar em que eu morava, e lá tudo estava completamente diferente. Era tudo muito colorido e cheio de luzes, como se estivéssemos no centro de uma cidade às vésperas do Natal. Havia muita gente nas ruas, e as lojas eram outras. Uma delas, que existe mesmo e é uma lanchonete, estava totalmente diferente: ao invés de um trailer com mesinhas na frente, haviam construido uma loja mesmo, só que as paredes eram todas de vidro, de forma que dava para ver tudo lá dentro. Eu ficava fascinada com aquilo, porque as luzes das outras lojas ficavam refletindo no vidro, dando um efeito muito bonito.
Nós atravessamos a rua e fomos para uma loja que, na vida real, é uma loja de bijuterias, mas que no sonho eu não sei dizer o que era. Então chegou um dos meus tios, acompanhado de várias pessoas, trazendo um carrinho de neném muito maior do que um carrinho normal. Dentro havia dois bebês, e no sonho eu sabia quem eram os pais deles, mas quando acordei já não conseguia me lembrar. Um dos bebês devia ter uns oito ou nove meses, e o outro tinha oito dias. Eu peguei o bebê maior no colo, mas ele era muito pesado para mim, então o entreguei para meu tio. Detalhe: como em todos os meus sonhos, os "adultos" eram muito maiores do que eu, como se eu fosse uma criancinha de quatro anos. Mas eu não era criança, era eu mesma.Todos os meus sonhos são assim.
Depois de entregar o bebê para o meu tio, eu peguei o outro bebê, de oito dias. Ele era igual a um bebê mais velho, só que em miniatura. Era tão pequeno que parecia que ia quebrar só de eu encostar nele. Eu fiquei segurando ele, brincando com ele, e meu pai falou que eu tinha que segurar de um jeito certo, fazendo a cabeça dele ficar deitada no meu ombro. Eu tentei, mas não consegui de jeito nenhum (mesmo na vida real, não tenho muito jeito com bebês). Então o coloquei de volta no carrinho, e eu e meus pais decidimos ir ver outras lojas, mais para a frente.
Nesse ponto, o sonho mudou completamente. Eu não estava mais no lugar em que morava; agora, eu estava em frente à UFES, prestes a atravessar a rua. Estava esperando o sinal abrir, quando olhei para o lado e vi um rapaz que tive a impressão de conhecer, mas que não conseguia lembrar quem era (mais um absurdo: no sonho ele era exatamente igual a quando o conheci e eu com certeza o reconheceria). Ele me viu e também me reconheceu, e começou a conversar comigo, mas eu ainda não tinha certeza de quem ele era. Ele falou "Você não lembra de mim? A gente estudou juntos no terceiro ano", e eu lembrei. É claro! Na vida real, ele era um dos meus melhores amigos naquela época, como eu poderia esquecer? Nós nos abraçamos, e no sonho eu sentia uma felicidade quase absurda por reencontrá-lo. Ficamos conversando por bastante tempo, e uma hora ele falou "Olha quem está ali". Quando olhei, atrás de nós estavam três garotas que também estudaram com a gente naquela época. Todos nós ficamos nos abraçando e conversando, e eu estava feliz como se tivesse finalmente encontrado algo que havia procurado a minha vida inteira. Nós atravessamos a rua e fomos até uma sorveteria enorme do outro lado (e que não existe na vida real), para tomar sorvete e comemorar o reencontro. Na sorveteria era tudo multi-colorido, havia sorvetes de todos os sabores imagináveis, e havia tortas de sorvete, bolos de sorvete, e uma infinidade de coisas que eu adoraria ter em casa todos os dias. Nós ficamos tomando sorvete e conversando, e então eu acordei.

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Agora, alguém por favor me explique: como é que alguém sonha com pessoas que não vê há uns cinco anos? Claro que não tinha apagado essas pessoas da cabeça, até porque éramos muito amigos, mas com o tempo a gente devia ir esquecendo, não é? Já fazia um tempo que não pensava neles, e agora esse sonho. Droga. Acordei morrendo de saudades deles. Com saudades daquela época, quando as coisas pareciam ser mais simples, nós estávamos sempre juntos e entrar na UFES ainda parecia um sonho impossível. Foi uma boa época. E olha que odeio nostalgia.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Como escolher um candidato

Eu não sei se vocês sabem, mas temos eleição esse ano. Iremos eleger senadores, deputados, governadores e o presidente da República. Se você não sabe, fique sabendo agora.
Muita gente ainda não tem a menor idéia de em quem vai votar. Eu tenho algumas idéias, mas nada definido. Já sei em quem não vou votar, mas é só. Muita gente também não sabe como escolher um candidato. Eu sei. Me interesso por política desde antes de poder votar. Que eu me lembre, me interesso por política desde os meus sete ou oito anos, embora nessa época não tivesse a menor idéia do que realmente fosse política. Mas sempre soube que era algo importante, que nossas vidas eram dirigidas pelos políticos, e assim que aprendi a ser gente, comecei a estudar o assunto. Virem gente também, crianças.
Certa vez li a seguinte frase: "não há nada de errado com aqueles que não se interessam por política; eles apenas serão dominados pelos que se interessam". É verdade. Se você não gosta de política, se não sabe em quem votar, ok, mas então abaixe a cabeça e não reclame. Agora, se você se interessa por política, está preocupado com isso, mas ainda não sabe como selecionar os candidatos, eu tenho algumas dicas para você.
  • Esqueça os preconceitos: muita gente não vota em um determinado candidato por ele ser de uma religião diferente, de uma classe diferente, ou simplesmente por não gostar da cara dele. Eu mesma fiz isso durante muito tempo. Essa é a pior forma de escolher um candidato: baseando-se em compatibilidades pessoais. Quando olhamos para um político, em certo grau temos que esquecer a pessoa, e olhar apenas (ou principalmente) para a figura pública. Exemplos não faltam por aí. Eleger um homossexual não é garantia de que ele irá defender os homossexuais; se um candidato evangélico for eleito, nada garante que ele dará prioridade aos evangélicos ou obrigará o ensino de religião nas escolas. Um bom político jamais permite que opiniões pessoais interfiram em seu trabalho. O que deve ser analisado é o histórico do candidato, não sua vida particular.
  • Verifique o histórico político: esse talvez seja o passo mais importante. Se o candidato tem uma carreira política, pesquise sobre ele. Ele cumpriu as promessas que fez em campanha? Existem justificativas aceitáveis para o não cumprimento de alguma promessa? Existem processos ou acusações graves contra ele? Se existem mas ele ainda não foi condenado, faça uma avaliação pessoal e decida você mesmo se ele parece ser culpado ou não. Quem vota em um candidato com passado sujo está pedindo para ser enganado. Não se esqueça de que aquelas dezenas de impostos que nos custam uma fortuna vão parar nas mãos dos políticos que elegemos. Eu não pediria para um ladrão segurar a minha carteira nem por cinco minutos, muito menos por quatro anos.
  • Verifique a veracidade das promessas atuais: todo candidato faz promessas e propostas. É esperado que ele cumpra essas promessas caso seja eleito. Uma forma de descobrir se o candidato pretende realmente fazer o que disse é perguntando como e com quais recursos ele pretende fazer. Por exemplo, digamos que um candidato tenha prometido construir determinada estrada. De onde virá o dinheiro para as obras? Quando ele pretende iniciar? Quando pretende concluir? Qual sua expectativa de qualidade para a obra? Caso não seja possível conseguir os recursos, quais as alternativas? Como serão contornados os possíveis impactos negativos que aquela obra terá? Se o candidato não conseguir responder com segurança e de forma satisfatória a essas perguntas, existe uma grande chance de que ele não tenha condições de cumprir a promessa, ou até mesmo que não esteja sendo sincero ao fazê-la.
  • Propostas para os problemas atuais: por melhor que tenha sido uma administração, sempre restam problemas a serem resolvidos. Verifique se o candidato tem consciência desses problemas e propostas para resolvê-los. Não adianta criar benefícios sem resolver os problemas. Para essas propostas, também é preciso verificar sua veracidade e a condição que o candidato terá de cumprí-las. E atenção: verifique se o problema que o candidato se propõe a resolver é da alçada do cargo que ele está disputando. Em um exemplo simples, um governador não pode prometer mudar uma lei federal, porque não tem poder para isso.
  • Desconfie do excesso de críticas à atual administração: como eu disse anteriormente, toda administração, por melhor que tenha sido, deixa problemas e comete erros. Mas em geral, também existem alguns acertos. Se o candidato ignora ou irreleva benefícios deixados pela administração anterior, ele pode "andar para trás" quando assumir o cargo. Por exemplo, se o governo atual criou algum benefício para determinada classe social e durante a campanha o cadidato age como se tais benefícios não existissem ou fossem insignificantes, isso mostra uma forte tendência a que ele acabe com esse benefício caso eleito. Também pode indicar insegurança política e falta de um plano de governo: um candidato com objetivos bem estabelecidos e segurança em suas propostas não precisa passar a campanha inteira atacando o governo atual nem os outros candidatos. Não esqueça que o que importa em um candidato são as propostas e suas condições de cumprí-las, e não o quanto ele acha que a administração atual errou.
  • Confie nas indicações e nas alianças: embora muitas vezes algumas alianças e indicações feitas por políticos pareçam estranhas, existe uma boa razão para que elas sejam feitas. Se você está satisfeito com o atual governante, considere com especial atenção a possibilidade de votar no candidato que ele está indicando. O mesmo vale para o caso em que o candidato apóia a atual administração. Nesses casos, existe uma boa chance de que todos os benefícios alcançados sejam mantidos e a administração continue na mesma linha de evolução. Por outro lado, se você não gosta do atual governo, não descarte imediatamente o candidato indicado por ele. Siga os outros passos e pense friamente se ele pode ou não ser um bom governante.
  • Assista aos debates, comícios e propagandas políticas: eu sei que é chato. Sei que o excesso de propaganda política as vezes é um pouco insuportável. Por outro lado, propagandas, comícios e debates são a melhor forma de você conhecer bem os candidatos e analisar cuidadosamente suas propostas. Assista pelo menos a alguns, e não vá pela maioria. Nem sempre a maioria sabe o que está fazendo.
  • Não confie plenamente nos meios de comunicação: outra boa forma de conhecer os candidatos são as entrevistas e matérias jornalísticas, mas cuidado com o jornalismo tendencioso. Muitas vezes ele é feito de forma quase imperceptível. Desconfie quando um meio de comunicação elogia ou critíca demais um candidato, e parece ignorar os erros/acertos dos outros. Desconfie também de debates para o quais apenas os "principais" candidatos são convidados. Não existem "principais" candidatos. Mesmo um candidato com pouquíssimas chances pode ter um aumento considerável de popularidade após aparecer mais na mídia e participar de debates.
  • Não se baseie em favores ou benefícios pessoais: esse talvez seja o melhor de todos os conselhos que tenho a dar. Quanto mais um candidato beneficia alguém em particular para que a pessoa vote nele, maiores as chances de que ele seja um péssimo governante. Lembre-se que na política, o que vale é o coletivo, e não o individual. Se um candidato precisa oferecer favores para que eleitores votem nele, é porque suas propostas são inconsistentes e ele não tem comprometimento político. Todos sabem (ou deveriam saber) o quanto a ética é fundamental para uma boa administração.
  • Dê uma chance aos novatos: só porque um candidato não tem passado político, não significa que ele não tem competência para administrar. Verifique seu passado público e seu histórico familiar. Se ele gerencia uma empresa de sucesso e é bem visto pelos funcionários, existem boas chances de que também será um bom administrador público. Se, por outro lado, a empresa não anda bem ou seus funcionários estão insatisfeitos, provavelmente essas características vão ser refletidas para o cargo público que ele assumir. Caso ele nunca tenha sido um dirigente, procure conhecer sua história: se conseguiu seus bens de forma justa, se lutou por onta própria ou precisou de indicações. Pessoalmente, não confio em candidatos que seguem a tradição familiar. Por exemplo: se um candidato é médico e toda a sua família é de médicos, pode ser que ele tenha conseguido seu diploma e seu cargo atual apenas por influência da família; consequentemente, é uma pessoa que não está acostumada a lutar por seus objetivos e não terá força política. Mas isso é uma opinião pessoal e posso estar enganada.
  • Não escute seus pais: nem seus avós, tios, irmãos, marido, esposa, amigos, etc. Não se deixe influenciar pelas opiniões alheias, embora também não deva ignorá-las. Escute opiniões, analise-as, veja se elas se enquadram à sua realidade e se fazem sentido para você. Não vá pela maioria, nem vote em alguém apenas porque um familiar indicou. Lembre-se que vocês podem ser da mesma família e terem visões e opiniões diferentes sobre os mais diversos assuntos. Um exemplo pessoal, mas genérico: eu sou a favor do aborto, meus pais não. Logo, eles jamais votariam em um candidato que fosse a favor do aborto, enquanto para mim seria um ponto positivo.
Eu não digo que os conselho acima estejam todos indiscutívelmente corretos, mas na minha visão são uma boa forma de avaliar de forma relativamente fria um candidato. Seja sempre o mais frio que puder, e não se agarre cegamente a nenhuma opinião nem a nenhum lado político. Pense bem, pense muito, antes de votar. E se não consegue escolher um candidato, se não conhece os candidatos ou não está satisfeito com nenhum deles, vote em branco. Dessa forma, você evita eleger acidentalmente um mau político.

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Eu não tenho posição política, nem defendo nenhuma ideologia ou candidato. Como disse anteriormente, não escolhi meus candidatos ainda. Estou pensando.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Coleções

Acho que todo mundo, em algum momento da vida, colecionou alguma coisa.
Quando eu era pequena, de vez em sempre fazia alguma coleção de figurinhas. Comprava o álbum, um monte de figurinhas, colava as que não tinha e tentava trocar as repetidas. Me lembro de um álbum do Garfield que era fantástico. Tive também das Chiquititas, da Sandy e do junior quando ainda eram crianças, do Pokémon, e devo ter tido outros que já não me lembro. Isso foi quando eu era muito pequena.
Uma coleção que semprei quis ter mas nunca consegui era a de bolinhas de gude. Eu até tive uma quantidade razoável, durante um curto tempo, mas algumas perdi jogando, outras perdi em algum buraco negro dentro de casa. Eu tinha muitas daquelas verdes, comuns, mas tinha duas azuis, muito diferentes de qualquer outra que já tivesse visto, que muito me orgulhavam. Não sei aonde elas foram parar.
Mas algumas pessoas colecionam coisas estranhas, coisas que ninguém mais coleciona. Eu sou uma dessas pessoas. Depois que deixei de ser criança (ia escrever "virei adolescente", mas lembrei que nunca fui adolescente), eu passei a colecionar letras de música. Meu pai tinha uma banca de revistas, então eu pegava as revistinhas de música e copiava as letras em um caderninho. Não precisava ser nenhuma música específica, de nenhum gênero, eu não precisava nem mesmo gostar da música. O que importava era que eu tivesse a letra.
Eu nunca pude aprender a tocar nenhum instrumento. Aliás, para não dizer "nenhum", eu sabia tocar flauta. Não aquelas profissionais, porque custam dinheiro e dinheiro é algo que nunca tive. Falo daquelas flautinhas que são vendidas em lojas de um e noventa e nove. Mas não podia tocar nenhum instrumento "legal". Também nunca aprendi a cantar, embora isso na prática nunca tenha me impedido de cantar a qualquer dia, qualquer hora, em qualquer lugar. Mas eu pegava essas revistinhas de música e passava horas lendo as letras e vendo os acordes, tentando entender o que significavam. Descobri coisas legais, como, por exemplo, que cada nota é representada por uma letra. Nunca pude fazer nada com esse conhecimento, mas gostava de saber e dizer essas coisas para os meus amiguinhos.
Mas voltando ao assunto (antes que eu comece a divagar sobre meus sonhos frustrados de aprender a tocar qualquer coisa, e sobre como meus pais nunca deram importância a me proporcionar uma formação musical porque "música não dá dinheiro"), eu colecionava letras de música. Essa foi a única coleção em que me especializei, e hoje me considero uma "colecionadora profissional", seja isso o que for. Com o tempo, minha coleção começou a ficar mais "refinada": ao invés de caderninhos (eu já tinha uns cinco), passei a escrever as letras no computador. Depois, passei a selecionar quais músicas queria na coleção, deixando só as que eu gostava. Mais tarde, passei a incluir músicas estrangeiras, pois antes só copiava as em português. Bem depois, quando já tinha dezoito anos, passei a traduzir as músicas em inglês (normalmente confio mais nas minhas traduções do que nas traduções "oficiais"). Aos dezenove anos, tinha uma coleção de quase duzentas letras de música.
Eu disse tinha. Tinha, porque a perdi. Meu computador morreu, eu não fazia backup nessa época, e só consegui salvar algumas coisas. As letras de música não foram uma delas. Tive que reiniciar minha coleção, do zero. Hoje, ela está crescendo novamente. Um dia serei a maior colecionadora de letras de música do mundo.
Minha irmã coleciona recortes de revistas e de jornais. Pode ser figuras de homens bonitos, de artistas, de paisagens, de crianças. Ela também coleciona desenhos feitos por ela mesma. Por um tempo, comecei a colecionar artigos de revistas, geralmente revistas científicas, mas papéis juntam poeira, e eu e a poeira nunca nos demos muito bem. Deixo as coleções de papéis por conta da minha irmã.
Lembro que praticamente todas as meninas da minha idade colecionavam papéis de carta. Isso era um tipo de coleção que eu não conseguia entender. Não via graça nenhuma em juntar papéis de carta. Por exemplo, eu brincava com minhas bolinhas de gude, com minhas figurinhas, cantava lendo minhas letras de músicas. Mas as meninas não escreviam nos papéis de carta. Para que serviam, então?
Sempre quis ter uma coleção de livros. Até tenho uma coleção razoável, uns vinte livros, talvez um pouco mais. Mas coleção de verdade, nunca tive. Primeiro, porque livro é caro. Segundo, porque minha casa é tão pequenininha, mas tão pequenininha, que mal cabe a gente aqui dentro, quanto mais uma estante cheia de livros. Tentei começar uma coleção de cd's, mas os cd's bons são caros também. A única coleção que deu certo na minha vida foi a de letras de músicas, porque não custa dinheiro.
Ah, eu tenho uma coleção de fotos do U2 no computador. Mas isso não pode ser considerado uma "coleção". Mesmo que sejam mais de duas mil fotos.
Uma vez li uma reportagem sobre um cara que colecionava carros de verdade. Tinha modelos desde o início do século até modelos novos. De todos os tipos, todas as cores e formatos. Ele guardava a coleção dele em uma mansão enorme, com uma garagem maior ainda. Eu tinha amiguinhos que colecionavam carros também, mas os deles não eram de verdade.
Quando minha coleção de letras de músicas cresceu, eu comecei a escrever minhas próprias letras. Eu não sei compor, mas escrevo letras e invento uma melodia. Inventei um número razoável de músicas, e as vezes fico cantarolando elas por aí.
Mas isso é assunto para outro texto.

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Esse foi o texto mais "de improviso" que já escrevi em toda a minha vida, eu acho. Estou testando minha capacidade de escrever sobre pressão.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A aids, o governo, o câncer e a hipocrisia

Eu nunca gostei das campanhas do governo contra a AIDS. A do último verão gostei menos ainda. O slogan que escolheram - Use camisinha com amor, paixão, ou só sexo mesmo - é, na minha opinião, horrível. Não que eu seja uma moralista que acha que sexo só deve ser feito depois do casamento ou que quem faz sexo por sexo está errado. Não sou hipócrita e acho que cada um faz o que bem entender. Mas o slogan, do ponto de vista publicitário, para mim ficou horrível.
Mas não era isso que eu ia falar. O que eu queria dizer é que existe uma enorme hipocrisia no governo com relação a campanhas de prevenção de uma forma geral. A AIDS é uma doença gravíssima, claro. Mas sua causa é comportamental; quem não fizer sexo, ou quem usar camisinha, ou quem não sair transando com meio mundo, não vai pegar. Mas o que dizer de uma doença como o câncer? Gravíssima, certo? E pode ser considerada bem mais grave do que a AIDS, porque sua cura é dificílima e sua prevenção também. Mas onde estão as campanhas do governo com relação á prevenção do câncer?
Para ser mais claro, vou falar do câncer de pele, que de todos é o de mais fácil prevenção (eu acho, talvez esteja errada). Use filtro solar e não pegue sol entre as dez e as dezesseis horas. Todo mundo sabe disso. A gente vê uma ou outra campanha do governo falando sobre. Mas alguém me explique porque a campanha contra a AIDS é muito mais intensa e agressiva do que a contra o câncer de pele? Câncer de pele tem cura, AIDS não. Mais ou menos. Depois de um certo estágio, curar um câncer é o mesmo que tentar curar um paciente com HIV. Além disso, é muito mais simples você não fazer sexo - ou fazer direito - do que não pegar sol nos horários de maior risco. Pra completar, a parte da população que mais se expõe aos riscos de ter um câncer é justamente aquela que não pode pagar um hospital particular. No SUS, você só vai descobrir que tem câncer quando já estiver quase morrendo, e olhe lá. E falando das formas de prevenção, entra outro ponto que mostra a hipocrisia governamental em seu auge: os preservativos e o filtro solar.
Quer fazer sexo sem pegar AIDS? Use camisinha. Até uma criança de três anos sabe disso, dada a intensa campanha do governo. Quer sair no sol sem ter um câncer? Use filtro solar. Também está nas campanhas. Só que, ops, temos um problema: é muito mais fácil comprar uma camisinha do que protetor solar.
Camisinhas são distribuídas gratuitamente em postos de saúde. Durante o verão, o governo distribui camisinhas em blitz de conscientização nas estradas. Se você for em uma farmácia, você compra camisinhas por um real, dois reais. Certa vez ganhei quinze camisinhas de uma amiga minha, que recebera por engano cinquenta no posto de saúde. Até meu primo de um ano conseguiria camisinhas se quisesse. Isso é ótimo. Agora alguém me explica, pelo amor de Deus, por que o governo não faz o mesmo com protetor solar (ia escrever "protetor solar" no plural mas fiquei com medo de escrever errado)? Um protetor solar fator trinta - que é pouco - custa no mínimo quase trinta reais. Um fator cinquenta é quarenta, quarenta e poucos. E isso porque estamos falando das marcas mais populares, e não daqueles protetores recomendados pelos dermatologistas. Não existe "distribuição gratuita" de filtro solar nas estradas. Não existe blitz de conscientização sobre o uso do filtro solar. Filtro solar não é distribuído gratuitamente nos postos de saúde. Se você for pobre e precisar sair no sol, você vai morrer de câncer, porque provavelmente não vai ter condição de comprar um protetor adequado.
Agora, onde está a preocupação do governo com a saúde da população? Estamos falando de uma doença séria, que mata mais do que a AIDS no Brasil (li isso em algum lugar que não me lembro), que tem uma prevenção mais difícil, que atinge pessoas de todo o tipo em todas as faixas etárias... E que não recebe a menor atenção do governo. É muito fácil colocar um outdoor dizendo "Nesse verão, use filtro solar". Ok, senhores, mas como usar um filtro solar que não podemos comprar? Por que, ao invés de me entregar camisinhas, vocês não me entregam embalagens individuais de filtro solar? Por que, ao invés de mandar as crianças da quarta série fazerem pesquisas sobre a gravidade da AIDS e a importância de usar camisinha, com direito a demonstrações de como colocar uma - isso aconteceu de verdade, e suspeito que aconteça com frequência nas escolas públicas - vocês não as mandam fazer uma intensa pesquisa sobre os perigos do sol e da radiação ultravioleta, com direito a um gráfico mostrando as chances de cura dependendo do grau do cãncer e o número de pessoas que morrem de câncer de pele, comparado com o número de pessoas que se curam e a incidência de outros cânceres e outras doenças perigosas?
Fico me perguntando qual é o verdadeiro interesse do governo ao realizar campanhas de conscientização sobre a AIDS. Não é - NÃO É - por preocupação com a saúde pública. Se fosse, haveria o mesmo tipo de campanha para o uso de filtro solar. Tento encontrar explicações razoáveis, mas não encontro. Então minha mente perturbada e paranóica começa a viajar por explicações bem menos razoáveis: o objetivo do governo é distrair a população. O que eles estão fazendo não é incentivar o uso de camisinha, é incentivar as pessoas a fazerem sexo. Principalmente os pobres, que são o público-alvo dessas campanhas. É a velha política do pão e circo.
Pode parecer loucura, mas não é. Pense bem: você é pobre. Pode ser muito pobre, ou simplesmente classe média baixa (estou em algum lugar entre esses dois níveis). Sua vida é difícil, você tem que trabalhar o dia inteiro e não tem tempo para se divertir. Ou você é muito jovem, mas sem perspectivas de futuro, sem condições de ter aquilo que quer, e sem ninguém para te orientar e fazer você descobrir que qualquer um pode, sim, ter uma vida melhor. E você começa a ficar com raiva do governo. Fica revoltado, começa a perceber o descaso com que as autoridades tratam os pobres, começa a conversar sobre isso com seus amigos e colegas de escola/trabalho, as pessoas começam a formar uma massa organizada de revolta. Afinal, está claro que o governo não se importa com eles. Mas aí vem aquela incrível campanha de combate à AIDS. Você recebe camisinhas na porta da escola. Os agentes de saúde vão até a sua casa! Uau! O governo é até bonzinho, no final das contas. E olha só, eles estão dizendo que a gente pode fazer sexo com qualquer um, ao contrário do que mamãe diz! Que legal. Gostei daquele cara. Esquece a revolta, gente, olha como o governo se importa com a nossa saúde. Vamos voltar para as nossas vidas medíocres, vamos voltar a comer a nossa grama, porque afinal o governo está fazendo tudo o que pode para que a população fique bem. E acabou-se uma revolução.
E por que camisinhas e não filtro solar? Porque chama mais atenção. Porque é mais legal fazer sexo do que ir trabalhar. Fazer sexo é melhor até do que ir na praia. Sério. Então as pessoas ficam muito mais felizes se alguém diz que elas podem fazer, e ainda dá as ferramentas necessárias para que façam isso de forma segura. Filtro solar fará efeito a longo prazo, e até lá, o mandato dos atuais governantes já vai ter acabado mesmo. AIDS não. AIDS a gente descobre logo. E é mais legal dizer "eu uso camisinha" do que "eu uso protetor solar".

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As eleições estão chegando. Deixem de ser idiotas e pelo menos tentem fazer uma escolha consciente. E se você não sabe em quem votar, vote em branco. Mas pare de ser enganado por qualquer um que te ofereça uma cesta básica.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Ilaquear

Eu queria escrever um conto e estava sem inspiração. Então tive a genial idéia de abrir o dicionário, apontar randomicamente para uma palavra, e tentar escrever o conto com base nela. Nossa, Vitoria, você consegue escrever um conto inteiro com base em uma palavrinha? Claro. Nossa, Vitória, você é um gênio! Eu sei.
Idéia tida, abri aleatoriamente o dicionário, fechei os olhos e apontei para uma palavra. Contei até três e olhei. A palavra era ilaquear.
Ilaquear. Quero que seu computador exploda agora se você já tinha usado essa palavra. De acordo com o meu dicionário (um minidicionário Rideel da Língua Portuguesa, autor Ubiratan Rosa), ilaquear significa enlaçar, enredar. Pelo que eu entendi, se você enlaça alguma coisa, você a ilaqueia. "Ele me ilaqueou em seus braços e me beijou..."
Palavra rejeitada, fui olhar as palavras próximas para ver se me inspirava. Olha só o que me apareceu, em meio a meia dúzia de palavras comuns: ignomínia (essa eu conhecia mas não deixa de ser estranha), ignoto, igualha, iídiche, ilação, ilativo, ilharga, ilibado, iliberal, ilição, ilídimo, ilidir. E só pára por aqui porque eu fiquei com preguiça de continuar lendo.
Tendo desistido de escrever o tal conto (uma vez que o uso de qualquer uma das palavras acima no meio de um conto poderia fazer o leitor parar de ler imediatamente) resolvi escrever essa crônica. Cujo único objetivo é tentar (e obviamente não conseguir) entender o motivo de haver tantas palavras que ninguém nunca usa nem nunca usou. Claro que, quando digo "ninguém", estou me referindo aos noventa por cento da população brasileira que tem um mínimo de alfabetização.
Quando eu era bem pequena (lá pelos catorze, quinze anos), eu adorava palavras difíceis. Por "difícil", entenda-se incomum, pouco utilizada e desconhecida da população em geral. Não sei como essa paixão começou, mas me lembro do meu fascínio quando li pela primeira vez o livro O Grande Mentecapto, de Fernando Sabino. O livro é realmente genial, mas o que me fez começar a ler foi o título. Mais especificamente, o "mentecapto". Eu não sabia, não tinha a menor idéia do que significava a palavra mentecapto, e a achei fantasticamente interessante. Só quando já tinha começado a ler foi que me lembrei de procurar no dicionário. E lá estava: "mentecapto: quem é mentalmente desordenado, que ou quem perdeu o juízo, alienado, louco. Que ou quem é destituído de inteligência, de bom senso; tolo, néscio, idiota".
Quando soube o significado, fiquei mais encantada ainda. Era tão óbvio. Mentecapto. Mente-capto. Louco. Era genial.
Havia outras palavras que também me fascinavam: defenestrar, narcisista, esdrúxulo. Eu ficava repetindo elas sempre que surgia a chance. Era insuportável. E não era para me mostrar nem parecer mais inteligente do que os meus amiguinhos; era pelo simples prazer de conseguir usar palavras que nenhuma outra criança da minha idade usava. Pura satisfação pessoal.
(Pensando bem, acho que se, hoje, eu me encontrasse comigo mesma naquela época, eu me daria uma surra)
De vez em quando alguém vinha, pra se vingar de mim, e dizia uma palavra difícil que eu não conhecia. Mas o feitiço virava contra o feiticeiro: eu adaptava a palavra ao meu vocabulário (que era bastante vasto, já que eu não tinha vida social e passava o dia lendo) e a usava para incomodar outras pessoas.
(Só uma pausa. Quando fui escrever "o feitiço virava contra o feiticeiro", por alguma razão eu escrevi "o feitiço virava contra o pescador". É o que acontece com a nossa mente quando a gente mora perto da praia.)
Eu sonhava (na verdade, admito que ainda sonho) em inventar um idioma só meu. Que nem fez o autor de O Senhor dos Anéis, criando um alfabeto, ou como fizeram os autores de Avatar. Ficava imaginando como seriam as palavras, as regras gramaticais, o jeito de falar, o que representariam as letras. Eu gostaria mais de fazer um alfabeto simbólico, como o que é usado no Japão. Acho que faria mais sentido.
Mas já estou falando de alfabetos que não existem e saí completamente do "ilaquear". Acho que isso é um sinal de que estou com sono e tenho que acabar essa crônica por aqui. Boa noite pra vocês. E cuidado com os ilaqueadores.

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Vitoria, você anda sumida, onde você está? Me procure em algum livro de cálculo e você vai me achar. Isso se chama "fim de período".

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Subindo...

Para chegar na minha casa, o ônibus tem que subir um morro. Na verdade, ter ele não tem, porque minha casa fica muito depois do morro, mas por algum motivo ele pega o caminho mais longo e sobe (para depois descer). Só que chamar aquela subida de "ladeira" é um eufemismo; eu prefiro chamá-la de "parede". A impressão que dá, enquanto o ônibus sobe, é que estamos na vertical. Não sei se vocês já tiveram a sensação de que a qualquer momento o ônibus não vai aguentar subir, e vai acabar descendo de ré. Eu tenho essa sensação todo dia.
E outro dia foi um pouco mais do que uma sensação.
Claro que uma hora tinha que acontecer. Era só questão de tempo. Eu sei que aquilo que a gente mais tem medo que aconteça sempre acontece. A gente estava subindo, como sempre, e no meio do caminho o ônibus começou a ter visível dificuldade de continuar. O motorista insistiu, insistiu e insistiu, até que... O ônibus morreu. Tadinho. E tadinha de mim, porque ele começou a ir para trás e todo mundo lá dentro começou a gritar. Menos eu, que não consigo gritar quando estou sob tensão. Era um tal de "ai Jesus" e "ah meu deus" de todos os lados, dentro e fora do ônibus. Mas o desespero maior durou pouco, porque afinal o ônibus ainda tinha freio e o motorista sabiamente fez uso dele.
Ônibus parado e morto no meio da subida. E agora? Vamos tentar de novo. O motorista conseguiu ligar o ônibus, e após sentir certa segurança, voltou a tentar subir. Só tentar, porque o ônibus morreu de novo e de novo foi para trás, de novo Jesus e deus eram chamados de todos os lados, as pessoas devem achar que quanto mais alto elas gritarem maior a chance de eles ouvirem.
Enquanto todos estavam rezando ou rindo daquele jeito que as pessoas riem para não demonstrar que estão nervosas, eu comecei a analisar as possíveis consequências de uma perda total dos freios e nossa irreversível queda até o fim da ladeira e a outra rua, que era uma avenida. Na verdade, o máximo que podia acontecer era vir um carro pela lateral e bater na gente. O que não era tão terrível. A não ser, é claro, que o carro fosse um caminhão.
No exato momento em que pensei isso, um dos caras que estavam na minha frente falou para o outro:
-- Po, lembra daquela vez em que o ônibus desceu e foi parar lá do outro lado?
-- Claro, ele foi parar lá na praia.
E eu, idiota:
-- Sério!?
Os dois olharam para mim, rindo.
-- Sério. Ele caiu dentro d'água e foi nadando até a outra margem.
Mais ou menos entre ele falar isso e eu ter um ataque de riso, o motorista ligou o ônibus novamente. Dessa vez, ele conseguiu subir, entre engasgos e quase-mortes do ônibus. Pelo menos essa era a única subida no caminho.
Pelo menos isso teve um lado bom, apesar dos dias de vida que devo ter perdido: agora eu já tinha uma história emocionante para contar para os meus amiguinhos.

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Sei que não tem nada a ver com nada, mas estão construindo uma igreja do lado da minha casa. Se não me engano, é uma igreja Maranata. Pressinto que coisas emocionantes envolvendo discussões religiosas estão para acontecer.

domingo, 23 de maio de 2010

Cobras

Eu e Luli éramos adolescentes, mas naquela fase muito mais próxima da infância do que da vida adulta. De vez em sempre fazíamos alguma coisa muito absurda. Naquele dia, resolvemos ir escondidas para a praia. Se não me engano, era inverno.
Para tornar as coisas mais emocionantes, resolvemos cortar caminho por uma trilha em um lugar deserto, no meio do mato. A tal trilha ia dar em frente à parte da praia que mais gostávamos. Eu não tinha nada na cabeça e comecei a descer tranquilamente (era uma descida bem inclinada), mas Luli não estava muito segura.
-- E se tiver cobra?
-- Não tem não.
-- Tem certeza?
-- Tenho. Vem logo.
-- Mas e se tiver?
Aquele medo dela estava me irritando. Sempre fui fácil de ser irritada.
-- Olha, eu vou te provar que não tem cobra nenhuma.
Havia dois rapazes ali, que deviam ter uns dezessete anos mas que para mim pareciam adultos. Eles estavam descendo e subindo a trilha de bicicleta; já haviam ido e voltado umas três vezes durante o tempo em que estávamos ali. Quando eles subiram de novo, me voltei para um deles e perguntei:
-- Moço, tem cobra aqui?
Eles olharam um para o outro e riram.
-- Tem. - disse um - Tem duas.
Eu e Luli nos olhamos, preocupadas.
-- Sério?
-- É. - disse o outro - Estavam conversando lá embaixo.
Eu e ela rimos, mas não entendemos nada. Tinha cobra ou não tinha? Acabamos descendo a trilha, de qualquer forma. Deixamos os dois rapazes rindo da nossa cara lá em cima.

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Juro que demorei uns cinco anos para entender o que eles queriam dizer com aquilo. Pensando nisso hoje, ainda bem que não pedi para eles mostrarem onde estavam as cobras. Acho que não gostaria de conversar com elas.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Matem os Funkeiros

Eu não ando de muito bom humor. A coisa em que mais tenho pensado ultimamente é em fugir para algum lugar bem distante, para nunca mais ter que me preocupar com as coisas estúpidas feitas por outras pessoas. Em um estado normal eu já explodo muito fácil. Atualmente, estou em explosão constante.
E pra completar, tenho que aguentar os indivíduos que ouvem funk no ônibus.
Existem tipos de música que eu não gosto. Axé, por exemplo. Agora, com o funk é diferente. Funk não pode entrar na lista de "tipos de música que não gosto" porque funk não é música. Funk é um som desagradável, do mesmo tipo que o som de uma avenida movimentada ou de crianças batendo sem parar uma colher em uma panela.
Claro, tem gente que adora funk. Traficantes, por exemplo. Quando eu vejo alguém ouvindo funk, me afasto o máximo possível. Provavelmente é um ladrão, ou coisa pior. Se não é ainda, será um dia. E pra mim, amigo de bandido é bandido também.
A polícia podia organizar um mega baile funk, com todos os funkeiros do Brasil reunidos, e no auge do baile jogar uma bomba em cima de todo mundo. Teria que ser uma bomba potente, pra não sobrar ninguém. Depois disso, os índices de criminalidade e prostituição no Brasil cairiam uns noventa porcento.
Mulher que gosta de funk é prostituta, homem que gosta de funk é bandido. Ouvir funk deveria ser proibido por lei. Quem gostasse de funk não deveria nem ser preso, deveria ser morto. Prisão é para pessoas que cometem crimes, não para animais. Animais devem ser abatidos.

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Como diz alguém que estuda comigo (agora não lembro quem é): sim, estou com ódio no coração.

sábado, 1 de maio de 2010

Aprendendo a não crer

Algumas pessoas me perguntam porquê eu não acredito em deus. Confesso que, até há algum tempo atrás, eu não sabia. Achava que um dia simplesmente tinha olhado para o céu e percebido que não havia anjos nele. Admito também que, na adolescência, eu dizia "não acredito em deus" pelo simples prazer de dizer. Só depois de muito tempo comecei a entender os motivos da minha falta de crenças.
Deixe-me contar uma história.
Apesar de virem de famílias religiosas, meus pais sempre foram agnósticos e bastante displicentes com relação à religião. Cresci sem nenhuma orientação religiosa. As vezes era levada por algum parente à igreja católica, mas aprendia tanto lá quanto nas aulas de música na escola. Não era batizada e sequer sabia o que era isso. Deus era uma palavra genérica usada nas mais diversas situações. As histórias bíblicas, o céu e o inferno, os santos, os castigos divinos, tudo isso significava tanto para mim quanto o Papai Noel ou o coelhinho da Páscoa. Mesmo muito nova, eu sabia que nada daquilo era real e achava que todos também sabiam.
Por volta dos oito anos, comecei a perceber que as coisas não eram tão simples. Estudei algum tempo em um colégio católico (os maiores traumas da minha infância vêm dessa época), e lá percebi que muitas pessoas, inclusive adultos, acreditavam no que estava na bíblia. Fiquei confusa. Eu não confiava plenamente nos adultos, sabia que eles mentiam na maioria das vezes, mas se todos eles diziam que deus existia, então deviam estar certos. Só que ao mesmo tempo, toda aquela história parecia louca demais, fantástica demais, para ter realmente acontecido.
Aos nove anos, minhas dúvidas religiosas tiveram a primeira explosão. Eu pensava demais - sobre amor, sexo, o sentido da vida, o futuro incerto, as pessoas, a fé, a verdade - e isso era demais para a cabeça de alguém tão pequena. Eu não acreditava em deus e tinha medo de deus me castigar por causa disso. Eu rezava para os santos, e não sabia o que eram santos. Eu comecei a querer provas. Pela primeira vez, apenas palavras não bastavam. Dê-me uma prova, deus, de que você existe. E fazia desafios: se deus existe, então quero que chova hoje; se deus existe, aquele menino vai gostar de mim; se deus existe, vou terminar aquele trabalho a tempo. Claro que havia a chance de pelo menos uma dessas coisas acontecer. Mas me lembro muito bem que nada do que eu pedi aconteceu. Então, estava resolvido. Deus não existia.
Claro que as coisas não eram tão simples, e uma hora minhas dúvidas voltariam. Quando eu tinha dez anos, passei um mês morando com meus avós, e eles eram crentes. Eu ia à igreja com eles, e lá eles me davam "provas" da existência de deus. Lembro que nenhuma daquelas provas era suficiente para mim, mas tinha medo de dizer isso. Se deus ouvisse, poderia me castigar. Eu tinha medo de um deus em quem eu não acreditava, e cheguei a querer me batizar por causa disso. Falavam da vinda de Jesus como se fosse acontecer a qualquer momento, e eu não entendia o que significava. Na minha cabeça, era como se Jesus tivesse sido levado para o céu em uma nave espacial que agora estivesse retornando. Definitivamente eu estava confusa. Foi a segunda explosão.
Mas eu tinha dez anos, e crianças de dez anos não se preocupam tanto assim com isso. Logo esquecem. Depois que voltei a morar com meus pais, não me lembro de ter pensado nisso de novo. Tudo só recomeçou mais ou menos dois anos depois.
Eu tinha tido um cachorrinho - Faísca, era o nome dele. O cachorrinho morreu. Eu nunca tinha perdido nada, nem ninguém. Ele era como um filho para mim. Quando me disseram que animais não tinham alma, e que portanto ele agora simplesmente já não existia, eu entrei em pânico. Se deus existe, todos os seres vivos têm que ter alma sim. Mas deus existe, me disseram, e os animais não têm alma. Então eu não gosto de deus, não quero saber de deus, e quando eu morrer prefiro ir para o inferno do que ficar ao lado de um deus como esse. Foi o que eu disse, no meio do recreio, para quem quisesse ouvir. Eu tinha doze anos.
Daí pra frente não parei mais de pensar no assunto. No início, a questão era se eu acreditava ou não em deus. Mas logo percebi que não era só isso, não era questão de acreditar. O que estava em jogo era a verdade, era tudo o que me diziam desde muito tempo, tudo em que todos acreditavam. Não era sobre fé, era sobre fatos. Deus existia ou não? Porque sua existência independia de eu acreditar. Eu precisava descobrir. A verdade está na bíblia, diziam. A palavra de deus está lá. Então, eu comecei a ler a bíblia. Desde o início.
Claro que nunca terminei. Me convenci que ela estava errada antes da metade. Primeiro, se fosse lê-la ao pé da letra, eu pararia já na primeira parte. Desde os três anos, eu sempre quis ser cientista, portanto sempre tive uma forma de pensamento tendendo para o racional e equilibrado. Deus criando o homem do barro não é racional. Deus criando Eva de uma costela de Adão não só não é racional, como é ridículo. Me perguntei como tanta gente acreditava nisso. Por outro lado, lendo a bíblia como uma metáfora, ela me provava que deus não existia. O que eu via ali eram acontecimentos comuns que as pessoas da época não conseguiam entender e atribuíam a deuses. Comecei a anotar em um diário todas as provas que a bíblia me dava de que o que estava escrito ali era apenas coisas comuns vistas pelos olhos de pessoas ignorantes. Não tenho mais o diário, mas posso dar como exemplo o dilúvio, os acontecimentos no mar vermelho e a luta de Jacob (ou Jacó) com um anjo.
Mas a bíblia estar certa ou errada não significava realmente que deus existia ou não. Milhares de religiões não têm nada a ver com o cristianismo e acreditam da mesma forma em um deus criador. Eu ainda rezava de vez em quando. Ao mesmo tempo, tinha muito medo de morrer, porque achava que depois da vida não havia nada, apenas a escuridão. Para alguém de catorze anos, isso era assustador. Eu chorava por medo de morrer, rezava para deus existir. Eu queria acreditar. Seria muito melhor se eu acreditasse. Seria melhor ainda se deus realmente existisse.
Minhas dúvidas quanto a esse assunto só terminaram muito depois, por volta dos dezessete ou dezoito anos. Foi nessa época que eu percebi que, se eu queria tanto acreditar em deus, era porque eu não acreditava. O máximo que eu conseguia era enganar a mim mesma. Acho que a última vez que rezei, eu tinha dezesseis anos, talvez menos. As coisas foram ficando cada vez mais claras para mim. A vida não tem que ter um sentido, embora seria maravilhoso se tivesse. Nós tentamos interpretar coisas não-humanas (como a origem do universo) com um olhar totalmente humano, e essa é a origem das crenças em deuses.
As pessoas acreditam que, em algum momento do passado, tivemos contato bastante direto com deuses ou anjos. Talvez, daqui a alguns milhares de anos, outras pessoas pensem o mesmo a respeito dos dias de hoje. A verdade é que ninguém hoje vê realmente anjos ou deuses, e é pouco provável que em algum momento do passado alguém tenha visto. Ainda somos muito atrasados em nossos pensamentos. Do mesmo jeito que, quando crianças, temos medo dos monstros que se escondem no escuro do quarto, depois de adultos tememos um deus invisível que não dá provas da sua existência.
O que mais me surpreende é que a maioria das pessoas que acredita simplesmente não quer pensar no assunto. Se você sabe que deus existe, se tem certeza absoluta disso, por que não fazer como eu fiz quando tinha só treze anos? Por que não ir anotando todas as provas da existência de deus, apenas para ter argumentos? Porque eu já conversei com centenas de crentes (de várias religiões), e quando o assunto chegava nas provas da existência de deus, todos evitavam o assunto, se ofendiam ou simplesmente diziam que acreditavam e pronto. Eu tenho alguns ótimos argumentos para essas pessoas. Estou desenvolvendo aos poucos uma técnica para transformar crentes em ateus, e não é tão difícil.
Mas isso já é outra história.

domingo, 25 de abril de 2010

Escola

Entre indas e vindas, eu passei oito dos meus vinte e dois anos estudando na mesma escola. E eu amava aquela escola. Não pela qualidade de ensino ou por algum funcionário em particular, mas pelo prédio. Aquele lindo prédio de tijolinhos.
Lembro quando estudei lá no maternal e no prézinho (nem sei se são esses os nomes usados hoje). Tinha um bebedouro com um degrauzinho para a gente beber água. Tinha umas letras na parede que eu não sabia ler. Tinha um parquinho enorme (acabei de passar lá e já não é tão enorme assim). Eu amava a casinha de tijolinhos que tinha no parquinho, e adorava principalmente subir no telhado dela. Era uma casinha de verdade, em miniatura. Eu gostava de tentar beijar os meninos lá dentro. Tinha também um brinquedo que eu nunca soube o nome, mas eram três cilindros coloridos, dois embaixo e um em cima, e a gente passava por dentro. Eu adorava ficar passando dentro do cilindro de cima. Se alguém souber o nome disso, por favor me diga.
Depois estudei lá entre a sétima série e o segundo ano do ensino médio. Lembro do prédio em si, e na minha imaginação (sempre tive ótima imaginação) aquilo parecia um castelo. No pátio da cantina tinha uns mini-jardins com uns banquinhos, também de tijolinhos, que agora foram pintados de azul e estão horríveis. Tinha uma área enorme, era lindo. Ainda é. Aliás, estou escrevendo sobre isso porque acabei de passar lá em frente, e fiquei olhando pela cerca, lembrando.
Eu lembro de ficar fazendo planos sobre aquele prédio: eu iria crescer, ficar rica, e compraria a escola. Mas ao invés de usar aquilo como escola, o que era obviamente um desperdício, eu iria morar lá. Seria minha casa de praia aqui no Brasil (porque minha moradia fixa seria na Europa, claro). Mas claro que eu faria uma reforma. As salas de aulas seriam os quartos. Eu trocaria as portas, colocaria portas iguais às dos castelos, até o teto e cheias de desenhos. A secretaría seria transformada em uma sala de televisão. A biblioteca seria uma biblioteca mesmo, mas muito maior, com muito mais livros, e nada daqueles livros inúteis de química e biologia. Só teria livros de literatura, de todos os lugares do mundo, em todas as línguas.
Os pátios seriam grandes salões de festa. A quadra seria transformada em uma piscina. Teria grandes canteiros de flores, e eu é que cuidaria de tudo, cada flor e cada pedrinha. No estacionamento, eu criaria cavalos de raça, para poder cavalgar no meu jardim. A cantina seria a cozinha, e talvez eu tivesse que fazer algumas adaptações nas salas dos professores, para ter uma sala de jantar, uma sala de jogos, um escritório para mim trabalhar. Porque eu tinha um sonho muito louco. Eu sonhava que eu ia ser duas coisas ao mesmo tempo: escritora e cientista. Eu queria fazer Ciência da Computação na UFES, vê se pode. Coisa de gente maluca.

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Eu ainda não comprei o prédio. Ainda. Mas já estou fazendo Computação na UFES. E eu costumo conseguir tudo o que eu quero. Comprar a escola é só uma questão de tempo.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Sexo no Ônibus

Meu Deus, que título. O número de visitas ao blog vai triplicar essa semana. Imagino a cara da pessoa que procura "sexo no ônibus" no google e dá direto nesse texto.

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Eu estava em pé no ônibus, e um homem que estava sentado se ofereceu para segurar o que eu tinha na mão, fosse o que fosse. Acho que era o fichário, mas isso não importa. Agradeci, e começamos a conversar. Depois de alguns minutos a pessoa ao lado dele desceu, e eu me sentei. E continuamos conversando.
No início, a conversa era absolutamente comum. O homem também parecia comum, embora falasse um pouco demais para um homem. Só que ele começou a se empolgar e se empolgar, e a conversa começou a tomar rumos absurdos.
-- Hoje em dia - ele dizia - as pessoas fazem muita pose, acham que velho é tudo conservador. Pois na minha época não era assim não. A primeira pessoa que falou de sexo comigo foi a minha avó.
Ok, a avó dele falava de sexo com ele. Até aí, normal. Minha avó também fala de sexo comigo.
-- Um dia - ele disse, depois de dizer um monte de coisas que eu não me lembro mais - eu conheci uma garota na casa de um amigo meu. Foi paixão a primeira vista. Aliás, paixão não. Foi desejo mesmo, aquela coisa bem carnal. No mesmo dia a gente foi pra casa da minha avó e ficamos uma semana inteira lá, transando sem parar. Foi só sexo mesmo, aquele fogo... Mas eu não devia estar te dizendo isso, você é uma criança.
-- Não, tenho vinte e dois anos.
-- Ah, então você sabe o que é sexo. - não, eu não sabia, eu achava que os bebês eram trazidos pela cegonha - Então foi isso, aquele fogo todo, a gente só transando e transando, e na casa da minha avó. Não sei como a gente não quebrou a cama. A gente só fazia sexo e bebia, não comíamos nada. Devo ter emagrecido uns dez quilos. Mas depois daquilo ela foi pra casa dela, eu fui pra minha casa, e a gente nunca mais se viu. A gente se encontrou na rua umas vezes, dizemos "oi" e pronto. Porque sexo é só isso mesmo.
Se você diz.
-- Eu sei.
-- Você não é crente, é?
-- Não mesmo.
-- Ah, que bom. Porque senão você ia achar que eu sou algum pecador. Agora, no máximo acha que eu sou maluco.
-- Imagina.
Imagina. Contar suas aventuras sexuais para uma garota vinte anos mais nova que você nunca viu na vida dentro de um ônibus? Normal.
-- Mas é assim mesmo. Eu só tenho dois vícios: sexo e bebida. O pessoal fala que beber é ruim, mas quer saber? Eu bebo mesmo. Assumido. Bebo e transo. E sou muito feliz assim.
-- Que bom.
Fiquei torcendo para que ele não me convidasse para fazer nenhuma das duas coisas. Não que eu não bebesse, mas não gostaria de beber com ele. E gostaria menos ainda de fazer sexo com ele.
Felizmente nessa hora o celular dele tocou. Ele atendeu, e depois pareceu ficar muito triste.
-- Eu vou ter que descer no terminal. - ele se levantou - Tchau, querida. Adorei conversar com você.
-- Eu também. - sorri simpaticamente, pensando em que tipo de conversa ele estava pensando, uma vez que tinha sido quase um monólogo da parte dele. Depois ele desceu, e nunca mais o vi.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Alcool Não-Inflamável

-- Rafael, lá em casa tem um alcool que não pega fogo!
-- Como assim?
Eu tinha que contar isso pra alguém. Foi a coisa mais estranha que já aconteceu comigo. Tá, talvez não tenha sido, mas foi interessante, e quando acontece alguma coisa interessante eu tenho que falar pra todo mundo. Eu gosto de falar. Gosto muito.
Mas antes de falar do alcool, vou contar as origens de tudo. Tudo começou há muitos e muitos anos, quando um mercador daqui do Espirito Santo viajou para a Europa, e de lá trouxe uma certa quantidade de caramujos comestíveis. Sua intenção era criá-los e vendê-los para restaurantes de luxo. Mas depois ele descobriu que havia sido enganado, e que os caramujos não só não eram comestíveis, como eram extremamente venenosos. Com raiva, ele jogou os pobres bichinhos fora, em algum buraco ou no meio do mato. Só que eles não morreram, e se reproduziram descontroladamente até tomarem toda a região e virarem uma praga.
E é por isso que, décadas depois, Vitoria e família estão no quintal, catando caramujos e os jogando em um buraco, para depois pôr fogo. Eles devem ser pegos com luvas, porque são venenosos e se você for contaminado, adeus. E eles devem ser queimados, porque só assim o parasita interno deles morre e não contamina o chão nem outros caramujos. Ou algo parecido.
O que importa é que íamos queimá-los. Mas para queimar uma quantidade dessas precisamos de alcool, e não tínhamos mais. Então lá vou eu no supermercado, e volto com uma garrafa novinha de alcool.
Nós encharcamos os bichinhos de alcool. Mamãe jogou o fósforo aceso e... Nada. Jogamos outro. Nada. Os fósforos apagavam antes de queimar. Ué, será que o palito está ruim? O vento podia estar apagando a chama, também. Então eu tive a idéia: Vamos molhar um pedaço de papel com alcool, esperar ele queimar um pouco, e colocar o papel juntos dos bichos. Ótima idéia. Pegamos um papel, molhamos a ponta no alcool, e colocamos fogo.
Ou melhor, tentamos. Porque uma pontinha de fogo surgiu onde o palito encostou, mas logo se apagou. Ué. Será que o fogo está muito claro e não dá pra ver? Bem, argumentei, só se o papel for a prova de fogo, porque ele definitivamente não está queimando. Então, fiz uma experiência: coloquei fogo na parte do papel que não tinha alcool. E essa parte queimou. Queimou até chegar na parte com alcool, e aí o fogo apagou.
Ficamos olhando para o papel e para o alcool, intrigados. Como assim? Um alcool que não pega fogo? Aliás, um alcool que apaga o fogo? O que era isso? Peguei a embalagem e fui ler o rótulo. Alcool não apropriado para a queima. O que? Mas em outra parte dizia que era inflamável. Ele é inflamável, mas não pega fogo. O que está acontecendo?
Depois fiz outras experiências com o alcool. Coloquei uma quantidade num pires e joguei um fósforo. Nada. Ele não pega fogo. Nunca. Só não joguei um fósforo dentro da garrafa porque meus instintos de sobrevivência não permitiram, mas tenho a certeza de que não ia acontecer nada. Se alguém mais aqui conhece um alcool que não queima, favor se comunicar comigo para trocarmos experiências.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

06 de abril

Dia 06 de abril caiu em uma terça-feira. Eu não sabia, mas lá no Rio já estava chovendo há quase vinte horas direto. Ruas estavam inundadas, casas caíram, o mundo estava acabando. Depois soube que alguns conhecidos ficaram presos de madrugada na rua, e só puderam voltar para casa no dia seguinte. Era o caos.

ENQUANTO ISSO...

Eu tinha chego na UFES ainda de manhã, e ficaria até as sete da noite. Quando fui para a iniciação científica, por volta das três, o dia estava claro e o céu, apesar de algumas nuvens, estava azul. Mas quando saí do prédio, duas horas depois, tudo ficara escuro e caía uma chuva que me deixou muito preocupada. Eu, sem guarda-chuva, sem blusa de frio e gripada, tive que sair correndo até o outro prédio, onde assistiria a última aula. Lá chegando, molhada e com frio, descobri que por alguma razão não haveria aula.
Isso seria algo bom, se eu tivesse como voltar para casa. Mas a chuva só piorava, raios cortavam o céu. Muitas pessoas que estavam com guarda-chuva tinham medo de sair do prédio, por causa do vento e por saberem que a UFES, sendo um mangue, deveria estar toda alagada (o que mais tarde se comprovou). O estacionamento em frente ao prédio estava inundado, quem estava de carro tinha que se arrastar por um metro de lama para conseguir ir embora. O vento fazia a chuva vir quase na horizontal. Era desesperador.
Desesperada - pois eu teria que pegar ainda uma hora e meia de ônibus, ou esperar até as sete para conseguir uma carona - resolvi ligar para casa. Afinal, sempre havia a possibilidade de minha tia ter ido para Vitória, e eu poderia pegar uma carona com ela.
-- Mãe, não teve a última aula...
-- Você está vindo?
-- Não mãe (ruído no telefone) é porque tá chovendo muito e eu não consigo sair do prédio, não sei como eu vou fazer...
-- Ué, espera a chuva passar e vem.
-- A tia não tá por aqui não?
-- Não, ela veio aqui em casa ainda há pouco, porque o pessoal de Juiz de Fora chegou.
-- Ah, tá... Então pelo jeito vai demorar pra eu sair daqui. Tá caindo o mundo.
-- Que exagero, uma chuvinha passageira, daqui há pouco passa.
Um raio caiu na minha frente. Tive que dar alguns passos para trás, porque o vento jogava a chuva para dentro do prédio.
-- Mãe, você não sabe o que tá dizendo.
Mamãe não poderia ajudar. Fiquei alerta, então, para a possibilidade de alguém passar com um guarda-chuva que desse para mais de uma pessoa. Mas os que se arriscavam a sair eram sem nada ou com uma sombrinha minúscula, e os três que passaram com guarda-chuvas grandes deram antes um olhar geral para todos, dizendo silenciosamente "não, eu não vou dar carona para ninguém, virem-se". Eu comecei a achar que ficaria presa ali para sempre.
Mas sempre há esperança. Rafael estava ali, e ligou para a mãe dele, pedindo socorro. Eu moro a quilômetros dele, mas pelo menos era na mesma direção e ele poderia me dar uma carona até o ponto. Quando, bastante tempo depois, a mãe dele chegou, eu senti que a distância entre eu e minha cama quentinha e seca diminuíra.
Mas como chegaríamos no carro? O estacionamento virara um mar de lama. Mesmo que ela parasse na rua, teríamos que passar pela lama para chegar. Então Rafael deu a idéia de que ela parasse no estacionamento atrás do prédio, pois para chegarmos lá poderíamos passar pela grama, que devia ser mais segura que a lama. Ela parou o carro e fomos correndo, mas nos deparamos com um rio de água no meio do caminho. Tentamos passar, mas era impossível. Voltamos correndo para o prédio, completamente encharcados. Nunca tinha me molhado tanto em uma chuva, quem me visse acharia que eu tinha mergulhado em uma piscina. Tentamos ir pelo outro lado, e dessa vez conseguimos, pois por ali o rio era mais estreito e conseguimos pular. Quase não acreditei quando entramos no carro. Mesmo o ar estando ligado e eu estar me sentindo um pinguim.
-- Rafael, me deixa no primeiro ponto que der.
Eu só queria ir pra casa. Só isso. Era muito simples. Ele me deixaria no ponto, eu pegaria o primeiro ônibus que fosse para o Terminal de Jacaraípe, e de lá pegaria outro ônibus até Nova Almeida. Nada demais. Só que, ao sairmos da UFES, percebi que as coisas não seriam muito simples. O lado direito da pista virara um rio, e era arriscado andar com o carro por ali. Quando chegamos na altura do ponto, eu desisti de descer: a calçada estava coberta de água, os carros que passavam criavam ondas, e as pessoas no ponto tentavam subir em qualquer lugar para se molharem um pouco menos. Os ônibus passavam super-lotados. Acabei indo para a casa do Rafael.
Mais tarde, eu soube que havia acidentes por toda a Grande Vitória, que os ônibus demoravam o dobro de tempo para chegar, e que algumas pessoas que saíram as oito só conseguiram chegar em casa depois da meia-noite. Na hora eu não sabia, mas uma vez que a chuva não passava e as ruas estavam alagadas, eu resolvi que ficaria por lá mesmo. Era arriscado demais ir para casa, e além do mais, eu ia perder muito tempo, e teria uma prova no dia seguinte. Era melhor ficar em Vitória. Fiquei um tempo na casa do Rafael, e de lá ele me levou para a casa de B, onde eu sempre fico mesmo. No dia seguinte eu tive febre e acabei entregando a prova quase em branco, mas isso é outra história.

ENQUANTO ISSO...

Minha avó, que mora em Coqueiral (pra quem não sabe onde é, imagine um lugar muito longe de tudo) tinha ido fazer um exame em Vitória. Para isso, ela conseguira carona, se não me engano, com alguém da igreja (ela é crente). Na volta, quando passavam por Laranjeiras, o carro quebrou. A chuva (a mesma chuva que eu estava pegando em Vitória) os alcançou logo depois.
Chamaram alguém para consertar o carro, mas o problema era grave. Minha avó, que tem mais de setenta anos e faz questão de enfatizar isso sempre que vai reclamar de alguma coisa, teve que ficar dentro do carro por horas e horas, debaixo de uma tempestade, esperando alguém chegar para ajudar. Chamaram o guincho para levar o carro, e ela e a amiga dela tiveram que ir embora de táxi. Se nada disso tivesse acontecido, ela teria chegado em casa por volta das três horas. Chegou mais de dez horas da noite.

ENQUANTO ISSO...

Em Nova Almeida, não estava chovendo tanto. Chovia, mas não como em Vitória. Era pouco mais de meia-noite, e meus pais dormiam. Mamãe estava tendo um sonho estranho, e tinha a impressão de que alguém a mandava acordar. Ela acordou, e ouviu um barulho, um tum-tum-tum. Era um barulho longe, mas como continuava, ela achou melhor acordar papai. Ele também ouviu o barulho, e definitivamente não era um barulho comum. Podia ser um bicho, um cachorro se esfregando na porta ou qualquer coisa assim - a minha casa não tem muro, então cachorros entram com frequência. Pensando nisso, ele levantou e foi ver o que era, usando a lanterninha do celular para iluminar o caminho.
Quando ele chegou na entrada da cozinha, deu um grito: "Marcia, tem gente aqui!". Minha mãe levantou correndo e foi ver. Quando chegou junto a ele, deu um grito que, de acordo com ela e com meu pai, foi o grito mais alto que ela já foi capaz de dar: a janela da cozinha estava escancarada, e eles viram por um momento um homem tentando entrar, mas que fugiu, provavelmente por causa dos gritos. Meu pai correu para a janela, gritando com o ladrão, que correu de um lado para o outro pelo quintal até fugir correndo pela cerca de arame farpado (espero que tenha se rasgado todo e morrido de hemorragia ou de tétano). Meu pai fechou a janela - o barulho que eles haviam escutado era do homem tentando abri-la por fora - e eles pegaram o que tinha a mão para se proteger, e saíram pela casa procurando mais alguém escondido. Não havia ninguém, então minha mãe mandou meu pai ligar para a polícia. Mas no desespero, eles esqueceram o número da polícia (190), então ligaram para a minha tia, que mora bem perto. Em dois minutos, minha tia chegou, junto dos meus outros tios, buzinando alto e procurando pelo ladrão. Meu pai afinal encontrou o número da polícia e ligou. Os policiais chegaram logo, deram uma olhada, fizeram uma busca pela área, mas como não encontraram ninguém, foram embora. Meus tios ainda ficaram algum tempo. No dia seguinte, encontramos uma faquinha - o ladrão devia ter usado aquilo para abrir a janela - um chinelo e um boné, que deviam ter sido esquecidos na fuga. Mas aquilo não serviu de nada e ainda não encontraram o ladrão. Pelo menos ele não levou nada. Mas agora nós dormimos com barras de ferro ao lado da cama.

domingo, 28 de março de 2010

O Amor, o Bêbado, e o Ônibus

-- É tudo o amor.
Eu estava sentada, olhando os carros passando. O homem sentara na minha frente, no banco virado para mim. Estava sem camisa e carregando um monte de sacolas, e tinha quase tanta carne no corpo quanto um esqueleto. Bom especificar que isso foi em um ônibus, que ele estava lotado e que ainda estávamos longe do terminal de Carapina. Quem pega o Transcol sabe do que estou falando.
Quando ele falou, eu olhei para ele involuntariamente. É tudo o amor, mas é tudo o que? Do que diabos aquele ser estava falando? A princípio achei que ele falava com alguém atrás de mim, mas depois percebi que não. Ele falava sozinho.
-- E é isso. - ele continuou seu raciocínio - É tudo o amor. Se o amor acabar, acabou tudo.
E ele repetiu isso de novo. E de novo. E de novo. Foram umas vinte variações de "o amor é tudo" e "se o amor acabar, tudo acaba".
-- Tudo, viu? Tudinho. Porque o amor é isso. Se acabou, puf. Acabou tudo.
Não vou rir, eu pensei, já começando a rir. Caí na besteira de virar pra olhar o cobrador, que também ria, e o cara achou que eu estava olhando para ele. Pronto. Aí vem mais uma pro blog, pensei.
-- Não é, menina? Não é? O amor é tudo.
-- É sim.
-- Porque então é a solidão. E a solidão é o escuro. A pessoa acha que tá andando no escuro, mas é a solidão. Porque a solidão, a solidão é escuro. No escuro a gente tá sozinho. E por isso é tudo o amor. É tudo o amor.
-- É sim.
Imagine o diálogo acima, de vinte formas ligeiramente diferentes, e foi mais ou menos a nossa conversa. Olhei de canto de olho para o cobrador. Ele estava com a cabeça apoiada na gaveta do dinheiro, rindo. Estava quase caindo do banco de tanto rir.
-- E a solidão é uma coisa muito escura.
-- É sim.
-- Mas eu não vou mais falar com você. - ele mudou subitamente, e começou a rir - Porque você não entende. Então não adianta falar, né? Eu não vou mais falar não. porque não tem jeito. Você não vai entender. Você acha que é besteira o que eu to falando? Não é não. - e riu de novo.
-- Pois é. - e voltei a olhar os carros, tentando não olhar para aquele cara, pelo amor de Deus começa a conversar com as sacolas mas não comigo. Eu nunca sei o que dizer pra uma pessoa bêbada-louca-ambas. Mas depois de cinco segundos, ele voltou a falar.
-- Porque no final, é tudo amor. E quando o amor acaba, é isso. Não tem mais nada. É só escuro. Só solidão. - isso soaria poético em outras circunstâncias - Por que quando você perde o amor da sua mulher... - A-ha! Agora tudo faz sentido - Aí é só solidão. E depois você não consegue mais o amor dela de volta. E aí acabou tudo. E a gente bebe, bebe, bebe, mas no final só fica o escuro.
Eu comecei a ficar com pena do cara. Mas ele estava falando e rindo. Ria como se fosse a pessoa mais feliz do mundo.
-- Mas é isso, menina. Pensa nisso. - ele levantou, meio cambaleando, com as sacolas de compras - Porque é só o escuro, heim? Não esquece. É só o escuro. E o que é o escuro? É a solidão. Mas pensa no... Pensa no... Pensa no amor.
E desceu do ônibus.

terça-feira, 23 de março de 2010

Querendo ou Não

Texto escrito originalmente em algum momento do ano passado. É legal, mas não vou adaptá-lo para o momento atual. Até porque, ele já foi adaptado duas vezes.

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Ano passado fui convocada para fazer o tal ENADE. Convocada mesmo, igual acontece com os meninos de dezoito anos em relação ao exército. Não me perguntaram se eu podia ou se já tinha outros planos, não quiseram saber se eu queria ou não. Simplesmente me chamaram, e, de acordo com a secretária lá do colegiado do meu curso, se eu não fizer esse ano eles me chamam ano que vem, e assim por diante. Se chegar a época de eu me formar e eu não tiver feito, não pego o meu diploma. Simples assim.
E eu não fui fazer.
Não fui, por três motivos. O primeiro é que sou revolucionária desde pequenininha, e não era agora que eu ia fazer o que os outros me mandam. Segundo, porque estava na casa dos meus pais no dia e não iria me dar ao trabalho de me deslocar sessenta quilômetros até o local da prova, sem perspectiva de lugar para almoçar e sem ter como voltar. E terceiro, porque eu não quero, e ano que vem ou depois pode mudar tudo e não ser mais obrigatório fazer nada.
E, se não for obrigatório, eu faço.
Revoltas a parte, isso me fez pensar na quantidade de coisas que nos obrigam a fazer. Identidade. CPF. Imposto de renda. Conta no banco. Votar. Tanta coisa a gente é obrigado a fazer, e nunca vi nenhuma manifestação popular a respeito disso. Tenho certeza de que, se ninguém aparecesse para fazer o ENADE, eles não iam segurar o diploma de todo mundo. Ou se ninguém fosse votar. Ou se o pessoal saísse todo na rua quebrando tudo, protestando contra tudo o que há de obrigatório nesse nosso livre país. Sei lá, que fizessem qualquer coisa. Mas não, ninguém faz nada.
Pior. Quando a pessoa aqui começa a reclamar, dizer que não vai fazer porra nenhuma e etc, todo mundo fica contra. Acham feio reclamar. "Sua doida", é do que chamam (e coisas piores). Como se eu fosse só uma... Sei lá, uma baderneira. "Tá reclamando pra aparecer", é o que eles devem pensar.
Ainda não entenderam que ninguém devia ser obrigado a fazer coisa nenhuma. Muito menos pelo governo. Se somos nós que pagamos os caras, se nós é que colocamos eles lá, nós é que deveríamos dar as ordens e não o contrário. Mas, de novo, ninguém faz nada. Fazer pra que, né? Estamos aí, muito bem, comendo nossa grama e bebendo nossa água. Ninguém entende o que é liberdade. Ninguém quer saber.
E ainda falam contra os governos autoritários. A Veja fala mal do Fidel (agora é do Raul). Quer mais autoritarismo do que aqui? Ver você pode, mas não pode tocar. Lá em Cuba você não toca, mas pelo menos não vê e não sabe o que está perdendo. E, se não gostou, você tem a chance de se jogar no mar e ir receber abrigo lá nos EUA. E brasileiro, vai pedir abrigo pra quem? Pra Europa? Estados Unidos? Eu acho que não.
Sempre achei que brasileiro era o pior povo que já foi posto sobre a Terra, e a cada vez tenho mais certeza disso. Está sempre tudo bom, ninguém faz mal pra ninguém, em tudo se dá um jeito. Brasileiro é manso, é preguiçoso. Tem preguiça de sair na rua, de fazer escândalo, de lutar. Os que gostam de lutar acabam indo parar no exército, e o exército é burro, estúpido, ignorante – e assim ficam todos os que acabam indo pra lá. Não, o Brasil precisa de gente inteligente, de gente que proteste, de união. Brasileiro não é unido não, gente. Toda essa história de hospitalidade brasileira, de brasileiro ser amigo de todo mundo, isso aí é tudo mentira. Brasileiro nunca se une quando deve. E não vem me dizer que a culpa é do governo.
Aliás – to indo longe – brasileiro sempre reclama do governo. Sempre! Mas quem colocou os caras lá em cima? Fui eu, e mais não sei quantos porcento da população. O cara não ia estar lá se a maioria não quisesse. As leis não seriam essas, se fossem outros que estivessem lá (tá, talvez fossem, mas não interessa). Cada povo tem o governo que merece. O governo do Brasil é uma representação internacional do povo brasileiro, lados bom e ruim juntos. Você reclama, você tem vergonha do que o estrangeiro pensa dos nossos políticos? Pois eles são você. É a gente, muito bem retratado, mostrando pro mundo inteiro o que o brasileiro é (ou deixa de ser). Que atire a primeira pedra quem nunca ultrapassou em local proibido, quem nunca bebeu antes dos dezoito anos ou cometeu qualquer outra "bobeirinha". Eu mesma não posso atirar pedras em ninguém.
Voltando ao início. O que o governo faria se milhões de estudantes deixassem de comparecer ao ENADE? Iam bloquear o diploma de todo mundo? Iam deixar a gente de castigo por um ano? Ou será que iam começar a rever os seus conceitos?
Não sei. Brasileiro, além de preguiçoso, é teimoso. Era capaz de obrigarem todo mundo a fazer no ano seguinte, só de birra. E aí os estudantes iam cansar de reclamar e iam fazer, mesmo. Um amigo meu me disse o seguinte: é só um dia perdido, não custa nada. Ele, por sinal, também foi fazer o ENADE. Aliás, não é nem um dia inteiro perdido. São só algumas horas.
Mas não são só algumas horas. Não é só um dia. É uma vida inteira perdida ali, naquele dia, naquele pedaço de papel. A sua vida, a vida  dos seus pais e a dos seus filhos. Não é só uma prova que você vai fazer. É todo o seu ideal, tudo o que você pensa ser certo ou errado, passando ali na sua frente, enquanto você escreve. Tudo pelo que você lutou sendo jogado fora. É você dizendo pro mundo que suas opiniões e seus sonhos não significam nada. É você deixando de ser você mesmo.
Mas, no fim das contas, isso talvez não seja tão importante assim. Afinal, somos todos brasileiros mesmo. Somos todos iguais, ontem, hoje e sempre. Talvez o que a gente ache certo não signifique nada nem para nós mesmos.
E talvez, no fim das contas, seja só eu que pense assim por aqui.

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Esse ano eu fui convocada de novo. E de novo não fui fazer. E, quando eu for fazer, vou entregar a prova em branco.