quarta-feira, 14 de agosto de 2013

As Memórias Mais Antigas

Lembro de me esconder atrás de um muro tão pequeno que hoje não chegaria nem na metade da minha perna.
Lembro de, em um dia pouco antes do Natal, estar contando para vários amigos meus que entraria na escola no ano seguinte, depois que fizesse três anos.
Lembro de estar no colo do meu pai, que estava tentando me fazer dormir, e eu era tão pequena que ele me segurava com os braços esticados de frente para ele, deixando minha cabeça nas mãos e minhas pernas quase esticadas no braço dele.
Lembro de só saber pensar sem palavras.
Por isso, quando eu escuto pessoas dizendo que não se lembram de nada antes dos sete anos de idade, eu fico muito chocada.
Claro que muita coisa eu não me lembro claramente. E muitas lembranças que eu tenho são tão soltas e fora de contexto que não tenho a menor ideia da idade que eu tinha. Consigo ter uma ideia melhor de idade porque me mudei muito, então dependendo do lugar em que a lembrança ocorreu, posso estimar uma idade; mas coisas antes dos seis anos, a não ser lembranças muito específicas como as que citei acima, é praticamente impossível saber quantos anos eu tinha.
Mas a questão é: como é possível pessoas não se lembrarem de nada de antes dos cinco anos? Eu me lembro até dos meus dois anos (talvez até algumas coisas de antes), e por um bom tempo achei que isso era absolutamente comum, até que algumas pessoas começaram a simplesmente não acreditar quando eu comentava "eu lembro que com dois anos aconteceu isso...". Descobri que dois ou três anos é realmente muito cedo, mas com quatro, cinco anos, você já é um ser bem desenvolvido e totalmente desanexo da sua mãe. Como é possível que nada de relevante tenha acontecido na sua vida até os cinco (seis, sete!) anos?
Muita gente tem como primeira lembrança o primeiro dia de aula. De fato, isso é totalmente normal e compreensível: quem cursa o maternal ou o pré (ou seja lá que nome dão a isso hoje) entra na escola muito cedo, e é um choque enorme: a primeira separação física dos seus pais, a entrada em um mundo estranho. É um trauma que você vai levar para a vida inteira. E se você tem três ou quatro anos, dificilmente você vai ter tido algum outro acontecimento tão chocante antes disso. Mas algumas pessoas só entram na escola aos sete, e não consigo acreditar que essa pessoa não teve absolutamente nenhum acontecimento digno de ficar gravado na memória antes disso.
Na verdade, não tenho a menor ideia de porquê eu lembro de coisas tão aleatórias quanto estar brincando na rua ou estar no colo do meu pai. Me lembro, por exemplo, de com quatro anos estar arrombando a janela de uma casa "abandonada", e é uma lembrança grandiosa o suficiente para ficar gravada; mas lembro também de estar pulando em cima de um tronco de árvore, por volta dos cinco anos, e não tenho nenhuma razão para lembrar disso.
Lembro de entrar embaixo de um caminhão, e o dono do caminhão chegou e ligou o caminhão (lágrimas caem pelo meu rosto). Foi um caos total. Existe um motivo para eu lembrar disso: o susto enorme que levei (embora não tenha ficado realmente com medo).
Mas me lembro de, com a mesma idade, estar com duas amigas minhas, depois do almoço, e discutir com elas porque eu queria brincar de correr e de lutinha, enquanto elas queriam brincar de boneca. Não existe nenhum motivo para que eu lembre disso.
É engraçado que lembranças muito antigas, como as da primeira infância (até os três anos), aparecem para mim meio como em um filme antigo, mas com uma inundação de sensações. Lembro de estar sentada na janela (não do lado da janela, e sim em cima da janela), de tarde, olhando a chuva molhando as plantas no jardim. Junto com essa lembrança, me vem o cheiro inebriante de terra molhada, de chuva, o barulho da água caindo nas folhas da árvore enorme que tinha no nosso jardim. Lembro de estar um pouco frio, e eu não sabia exatamente o que era o frio, o que significava aquela sensação e como lidar com ela. Lembro de gostar de olhar a chuva no jardim com um prazer hipnótico. Essas lembranças vêm para mim em uma inundação de som, cheiro, frio. É uma lembrança boa.
Lembro de sentir cada coisa muito profundamente, de amar as coisas muito profundamente, de pensar muito profundamente.
Acho que uma pessoa que não lembre de sua primeira infância, ou ao menos dos cinco primeiros anos de sua vida, perde muita coisa. Nunca mais você vai ser tão puro, tão cru, quanto naquela época. É a fase em que você está mais próximo do ser humano ancestral, do mundo de onde você veio, dos espíritos ancestrais, enfim, daquilo tudo que, depois de adulto, você vai pensar que é bobo e desimportante. É bom lembrar de uma época em que o simples fato de existir parecia fascinante.

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Vitoria Esewer é incapaz de lembrar o que almoçou ontem.

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