terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Gato Preto

Eu tinha apenas dez anos. Era apenas uma doce, meiga e inocente garotinha, que gostava de frequentar a biblioteca e ler livros complicados que as outras crianças não liam. E lá estava eu, olhando as prateleiras reservadas para ivros "Adequados para 1ª a 4ª série".
A professora havia pedido para escolhermos um livro e fazermos um resumo dele, dizendo se gostamos ou não. A maioria das crianças estava escolhendo livros bem simples, mas eu, claro, queria um livro que eu nunca tivesse lido e que fosse o mais diferente e impactante possível. Após rodar as prateleiras várias vezes e não achar nada interessante, eu afinal vi um livro grosso, de capa preta, que estava caído ao lado de outros mais finos, e que tinha uma capa muito bonita (não lembro como era). Tinha até um fitinha vermelha no meio para servir de marcador. Peguei o livro e li o que estava escrito na capa: Histórias Extraordinárias. O autor era um tal de Edgar Allan Poe.
Folheei o livro. Não tinha gravuras, o que era ótimo. Era pesado e parecia antigo ou muito usado. Aparentemente as histórias eram de terror, e eu sempre gostei desse tipo de coisa. Sem pensar muito, e empolgada pelo aspecto do livro, eu o aluguei.
Foi o começo.
Eu não sabia, mas aquele livro estava na prateleira errada. Ele deveria estar na estante destinada às crianças de quinta à oitava série, se não me engano. Naquele mesmo dia, assim que cheguei em casa, comecei a ler.
Era um livro de contos. Eu o li todo, mas não me lembro da maioria dos contos (até porque, depois disso já reli Edgar Allan Poe tantas vezes que é difícil lembrar qual conto está em qual livro). Só lembro de um, o que eu mais gostei, e o que eu escolhi para fazer o meu resumo: O Gato Preto.
No dia marcado, a professora foi pedindo aos alunos, um por um, que fossem lá na frente e contassem a história do livro que tinham lido. Quando ela me chamou, eu fui, feliz e contente, para a frente da sala, levando na mão o meu livro. A professora disse:
-- Nossa Vitoria, que livro grande!
-- É um livro de contos, tia!
-- Ah sim, e qual o nome e o autor do conto que você escolheu ?
-- É O Gato Preto, de Edgar Allan Poe!
-- E você gostou da história?
-- Gostei!
-- Então conte o seu resumo.
E eu comecei a contar, mais ou menos assim (SPOILERS!):
"O conto fala de um moço que tinha um gato, e ele gostava muito do gato, e esse gato era preto. Mas aí ele começou a beber muito e começou a fazer um monte de coisas erradas, e um dia ele arrancou o olho do gato com um canivete. Aí depois ele ficou se sentindo culpado, mas como ele continuava a beber, ele voltou a ficar com raiva do gato e um dia enforcou ele numa árvore. Só que aí a casa dele pegou fogo, e o fogo destruiu a casa toda, e a única parede que sobrou ficou com a imagem do gato enforcado, e o moço ficou morrendo de medo disso. Aí depois de algum tempo ele encontrou outro gato muito parecido com o que ele tinha antes, só que esse tinha uma mancha branca no pêlo, e pegou esse gato pra ele, pra deixar de se sentir culpado por ter matado o outro. Só que só depois ele percebeu que esse gato também não tinha um olho e que a mancha branca tinha o formato de uma forca, e por isso ele passou a odiar esse gato e a ter medo dele. Aí um dia, quando ele estava com a mulher dele no porão da casa, o gato passou correndo por ele e quase derrubou ele, e ele ficou com tanta raiva que tentou matar o gato com um machado, mas a mulher dele tentou impedir, aí ele deu uma machadada na cabeça dela e ela morreu. Aí ele escondeu o corpo dela dentro da parede, e quando foi procurar o gato pra matar ele também, descobriu que ele tinha sumido. Aí vários dias se passaram e o gato não apareceu, e o moço estava muito feliz com isso. Aí a polícia foi na casa dele e revistou a casa mas não achou nada nem no porão, e quando eles já estavam indo embora o moço estava tão feliz por não ter sido descoberto, que bateu na parede, e da parede saiu um grito horrível que parecia de um fantasma, e os policiais levaram um susto mas correram para ver o que tinha ali e quebraram a parede, e encontraram o cadáver da mulher, e o gato estava em cima da cabeça dela, porque o moço tinha emparedado ele junto sem perceber."
Durante a minha narrativa, várias meninas da sala murmuravam "credo", "que horrível" e coisas parecidas. Quando acabei, a professora me olhava completamente chocada, com a mão tapando a boca, e demorou alguns segundos para dizer alguma coisa.
-- Onde você pegou esse livro, Vitoria?
-- Na biblioteca...
-- E a tia da biblioteca deixou você pegar?
-- Claro.
-- Esse livro não é pra sua idade... Que história horrorosa...
-- Ah tia, horrorosa nada, eu gostei!
-- Gostou!?
-- Gostei, achei tão legal! Podia ter mais livros assim na biblioteca!
Todos os alunos me olharam em silêncio por alguns minutos. Nesse momento o sinal que indicava o fim da aula tocou, salvando-me do olhar de horror da professora e das outras crianças. Depois desse dia, aquela professora nunca mais conversou normalmente comigo. E as histórias que eu escrevia nunca mais foram as mesmas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa, esse post me fez lembrar de uma vez em que minha professora da quarta série pediu que os alunos escrevessem uma estorinha, e eu apareci com um épico de quatro páginas (o que era incrível, na época) sobre crianças, cemitérios e "coisas sobrenaturais". O meu conto foi o único trabalho que não foi lido em voz alta :p