quinta-feira, 18 de março de 2010

Seletivo

Era a primeira vez, em meses, que eu pegava um ônibus seletivo ao invés do transcol. Primeiro, porque meu passe do transcol tinha acabado e eu ia ter que gastar dinheiro mesmo, e segundo, porque tinha que estar na UFES em uma hora e o transcol demora uma hora e meia. E com o calor que estava fazendo, não era nada mal fazer todo o percurso num ônibus com ar-condicionado, e sentada em uma poltrona macia, não naquelas duras de plástico.
Mas eu não gosto de andar de seletivo. Digo, por um lado é bom, confortável e tudo o mais. Mas as pessoas não são interessantes. Você não vê em um seletivo as cenas peculiares que vê no transcol. Se eu andasse todo dia de seletivo, o que escreveria no blog? Nada, pensei. E estava chegando o momento de atualizar o blog e eu não tinha nada pronto, e ainda por cima pegava um seletivo, que em nada contribuiria para a minha pane mental. Pensando nisso, e tomada pelo desespero de não ter o que escrever, peguei minha agenda, uma caneta, e pensei: se acontecer alguma coisa interessante, qualquer coisa, eu anoto aqui pra não esquecer. Porque, eu esqueci de dizer, minha memória é péssima.
Eu sabia que não aconteceria nada interessante dentro do ônibus. Então, minha atenção se voltou para o grandioso mundo de fora, ou pelo menos para a fração dele que eu podia ver pela janela. As pessoas na rua ainda eram as pessoas na rua - embora fossem outras ruas - e coisas peculiares e interessantes poderiam acontecer, embora eu não tivesse muita esperança. E ao pensar isso, eu vi um anão com cara de mau carregando dois baldes cheios de pedras.
Não estou brincando. Não estou sequer alterando os fatos para ficar mais interessante. O ônibus estava parado - acho que em um ponto - e passou dois caras pela calçada. Um alto e magro, que estava rindo sem parar, e um anão, com cara de mau - igual aqueles gangsteres baixinhos dos filmes - carregando dois baldes, um em cada mão, e os dois estavam cheios de pedras. Pedras mesmo, daquelas que a gente encontra na rua. Infelizmente o ônibus seguiu caminho antes que eu pudesse ver o que ele ia fazer com aquilo.
Depois disso, por um tempo a viagem prosseguiu sem maiores novidades, a não ser um enjôo que comecei a sentir por estar escrevendo dentro do ônibus. Eu enjôo até em gangorra. Em uma parte do caminho vi uma enorme nuvem de urubus, centenas de urubus sobre um terreno baldio, mas isso não era legal nem engraçado. No máximo, significava que havia um ou dois cadáveres ali. O que não é nada emocionante nem incomum, e que com certeza não chamaria a atenção dos meus leitores. E não, não cheguei a descobrir o que havia naquele terreno baldio.
Então entramos em outro lugar, um bairro - acho que era Manguinhos, ou o bairro depois de Manguinhos, seja ele qual for (descobri depois de dois dias que era Novo Horizonte). Havia uma praça, e ali... A primeira coisa que vi foi uma mulher grávida. Tudo bem, se ela não estivesse usando um vestido muito curto, que por causa da barriga ficava levantado na frente, dando a impressão de que ela colocara uma bola de futebol por baixo da roupa. Pra completar, estava ventando, e o vento levantava o vestido e fazia aparecer a calcinha da mulher, enquanto ela, apoiada no poste, não estava nem aí.
Logo depois, na mesma praça, vejo um rapaz passando. O rapaz devia ter a minha idade e seria normal, se não fosse por uma gigantesca tatuagem de fada no pescoço. A coisa era tão grande que eu podia ver os detalhes - o pescoço dele também era bem grande. Era uma fada, com varinha de condão e tudo, e atrás havia uma espécie de estrela verde limão, tão berrante que parecia ser fluorescente. Parecia que ele tinha colado alguma página de histórias em quadrinhos no pescoço.
Mais ou menos nessa hora, tive que parar de olhar para fora e voltar minhas atenções para dentro do ônibus. Uma mulher havia acabado de entrar, e queria sentar ao meu lado, mas minha mochila estava no banco. Ok, tudo bem, eu tiro. E não me importaria, sinceramente não me importaria, apesar da minha mochila ser enorme e eu ter que colocar ela no chão e ela ficar me atrapalhando a viagem inteira. Mas haviam dezenas de lugares vagos no ônibus, que não eram ocupados por mochilas, havia inclusive um par de bancos inteiro sem ninguém. Por que, meu Deus, aquela criatura queria sentar ao meu lado? Seria alguma lésbica maníaca que se apaixonara por mim? Ou será que ela resolvera sentar ali justamente por eu ter colocado minha mochila? Vai saber. Mistérios.
Depois que a dondoca (não pejorativamente, mas ela era muito perua) já estava sentada, voltei a olhar para fora e a anotar tudo na minha agenda. Estávamos passando em frente a um posto de gasolina, e ali estava um atendente do ponto, que devia ter uns quarenta anos, e que, provavelmente por causa do calor, levantara a camisa até a altura do peito. Tudo bem, o calor nos tira o senso de ridículo, mas senhor, pense nas pessoas ao seu redor. Porque o homem em questão tinha uma barriga maior do que a da mulher grávida que eu vira anteriormente, e não era de gordura, porque a barriga era dura, fazia uma bola perfeita, redondinha. Parecia que tinha uma melancia ali dentro.
Mas felizmente o ônibus seguiu viagem e eu não tive que ficar muito tempo olhando para a barriga do homem grávido no posto. Andamos por mais bastante tempo, e eu até já fechara minha agenda, crendo que nada demais poderia acontecer agora que já estávamos quase no fim da viagem. Vi ainda uma mulher jogando um cigarro no chão, o que me irritou profundamente, mas não valia a pena escrever no blog. Minha viagem estava no fim.
Foi quando eu vi um homem morto.
Na verdade, eu não sei se ele estava morto. Mas estava caído no chão, na calçada, em uma posição que parecia ter vindo correndo e caído. Estava sem camisa e sem chinelos, e não se mexia. E ao redor e sob ele, havia uma mancha escura e vermelha, que parecia demais com sangue.
Fiquei olhando, empolgada. Um homem morto! Era a primeira vez que eu via um. Nunca fui nem em enterro. Queria ver se ele estava morto mesmo. Haviam pessoas ao redor, olhando, e estava bastante movimentado ali, embora eu não soubesse se era por causa dele ou não. Mas o ônibus, que estava parado no sinal, de repente começou a andar. Quase gritei "espera!", pra poder ficar vendo o desenrolar da situação e descobrir se o homem estava morto ou não. Mas mudei de idéia e me sentei de novo. Não tive mais grandes emoções até chegar na UFES, dez minutos depois.

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Eu fiquei enjoada o resto do dia.

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