domingo, 21 de outubro de 2012

Correndo

Eu costumava gostar de correr.
Mais do que isso. Além de gostar de correr, eu costumava correr mesmo.
A maioria das pessoas, quando diz "eu vou correr", está se referindo a fazer uma corrida controlada, sob uma velocidade constante e um tempo pré-definido, seguindo algumas regras básicas de postura e respiração, com o objetivo de praticar algum tipo de atividade física e perder alguns preciosos quilos.
Não é a isso que eu me refiro, quando digo que costumava correr.
Eu costumava correr mesmo.
Para mim, correr era aquilo que fazíamos quando precisávamos pensar, ou quando queríamos fugir do mundo, ou quando simplesmente havia uma reta enorme na nossa frente. Eu corria loucamente, desesperadamente, como se fugisse da morte - ou como se a perseguisse. Não havia um ambiente controlado: eu corria mais rápido se aguentasse, mais devagar se não aguentasse, respirava conforme meus pulmões pediam ar, engolia vento e tinha que parar com dores na barriga, voltava a correr antes do corpo se recuperar, corria em subidas sem ir mais devagar, em descidas sem nenhum metódo que dificultasse uma queda, tropeçava e caía e levantava e voltava a correr, e normalmente chegava ao destino encharcada de suor, com os joelhos e as mãos sangrando, com os pés em brasa caso corresse descalça - e muitas vezes com cacos de vidro e outras coisas pontudas fincadas neles - com o coração descompassado e com a respiração totalmente irregular. Além, é claro, das dores e pontadas em todo o corpo.
Era delicioso.
Eu corria até estar tão exausta que o corpo simplesmente parava de funcionar. Já caí de cansaço no meio de uma corrida e fiquei deitada no chão, sem conseguir mover um músculo, até que alguém de bicicleta caiu em cima de mim ao tentar não me atropelar e acabamos tendo uma briga física violenta. Já tropecei no meio de uma corrida e voei por vários metros até atingir o chão de asfalto, que ficou com metade do sangue das minhas mãos. Já corri por horas, praticamente sem parar, e no final me sentia a pessoa mais feliz do mundo simplesmente por correr.
Devo acrescentar aqui que, apesar dos tombos (foram muitos), eu nunca quebrei nenhum osso, e nunca bati a cabeça. Uma criança de verdade, uma criança que corre mesmo, nunca bate a cabeça e dificilmente quebra ossos. Somos mais fortes do que isso.
Poucas coisas eram capazes de me parar no meio de uma corrida. Nem mesmo carros. Só por milagre nunca fui atropelada (por carros; por bicicletas, fui várias vezes). As coisas que me paravam eram árvores de fruta no meio do caminho, minha mãe ou meu pai me gritando ou correndo atrás de mim (eu nunca fui de fugir, sempre deixava eles me pegarem), cachorros soltos, e a sede maldita que mandava uma ordem para que todos os músculos entrassem em greve imediata. Fora isso, nada me parava. Nada.
Tudo isso é para que vocês entendam a minha revolta, o meu desespero, por não aguentar correr por dois minutos hoje. Com dois minutos de corrida, eu sinto hoje o mesmo que sentia na minha infância, após horas de corrida intensa. Eu lembro de correr subindo um morro íngreme enorme, e hoje se tentar correr naquele ritmo, mesmo que seja em uma descida, o mais provável é que eu tenha um treco e morra.
Eu lembro de um dia estar correndo loucamente em volta do carro (parado) dos meus pais, e ouvi minha mãe dizendo para o meu pai algo como "como é que pode criança aguentar correr desse jeito". Ao ouvir isso, a primeira coisa que pensei foi que isso era absurdo, pois se eu aguentava correr naquele momento, aguentaria correr durante a minha vida toda no mesmo ritmo. Não entendia as limitações de uma pessoa adulta.
Pobre criança.
Eu duvido que mesmo o maior maratonista do mundo consiga correr como uma criança. Parece que gastamos todas as nossas energias na infância, e quando chegamos a idade adulta, só nos resta delas o suficiente para nos matermos vivos, e olhe lá. Do jeito que as coisas são, não me surpreende que algumas pessoas da minha idade passem o dia todo dentro de casa, sem fazer nada. É tudo o que podem fazer para se manterem vivas mais alguns anos, antes que suas baterias expirem de vez e elas não consigam sequer respirar.

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