quinta-feira, 29 de março de 2012

Ossos do Ofício


Um rapaz me chama para ajudá-lo.
-- Como eu faço pra copiar esse documento pro pen-drive?
Ensino a ele como fazer. Pergunto se ele entendeu, ele diz que sim, me agradece e eu volto pro meu lugar. Um minuto depois, ele me chama de novo.
-- E como eu faço pra copiar esse outro documento?
-- Do mesmo jeito que eu te ensinei antes.
-- E como é?
Repito todos os procedimentos. Tomo o cuidado de fazer com que ele faça tudo, para que memorize o passo-a-passo e possa fazer sozinho. Novamente ele diz que entendeu, me agradece e eu vou atender outras pessoas. Novamente, depois de um minuto, ele me chama.
-- Agora eu quero copiar essa imagem.
-- É do mesmo jeito que você fez com os documentos.
-- E como é?
Percebo que, não importa quantas vezes eu ensine, ele não vai entender. Continuo indo lá sempre que ele me chama, e ele me chama mais cinco vezes, para fazer sempre a mesma coisa.

* * * * *

Em um sábado feliz e tranquilo, depois de ensinar uma senhora a anexar um documento em um email, ela começa a conversar comigo.
-- Você sabe que o mundo está perto do fim, não sabe?
Claro que sei, como eu não saberia?
-- É, eu sei.
-- Digo, o mundo não vai acabar, mas a humanidade como conhecemos hoje vai. Vai haver uma grande transformação na alma da humanidade. E nós temos que nos preparar.
-- Com certeza.
-- Nós já estamos estocando alimentos. Temos que estocar os alimentos certos, sabe, para nos preparar.
Não pergunto quais são esses alimentos, muito menos a quem o "nós" se refere. Certas coisas é melhor não saber.
-- Temos que nos preparar - ela continua - para o que está por vir. Muito acham que é bobagem, mas apenas os que estiverem preparados sobreviverão.
-- Claro.
-- Você tem se preparado?
-- Sempre.

* * * * *

Uma mulher está há mais ou menos quinze minutos me contando uma história da qual não estou entendendo absolutamente nada. Por via das dúvidas, sempre que ela faz uma pausa, eu balanço a cabeça e murmuro "hum", para demonstrar interesse. Até que ela diz:
-- ... mas o que falta hoje em dia é fé em Deus. Você sabia que existem muitas pessoas hoje que não têm fé em Deus?
Ah, sei, tipo eu.
-- Sério?
-- Sério, menina, é uma coisa horrível... - ela para e me olha com desconfiança - Você acredita em Deus, não é?
Oh não, ela sabe.
-- Claro que acredito. Tenho muita fé.
Perdoai-me, Nossa Senhora Protetora dos Ateus.
-- Ah, que bom, porque as vezes a gente se decepciona com as pessoas... Mas você é uma menina boazinha, eu sabia que você tinha fé.
Claro, porque todos os ateus são pessoas más, depravadas, assassinas...
-- Tenho sim.
-- E qual é a sua religião?
Droga. Pense rápido e vá pela mais obvia.
-- Católica.
-- E você é batizada, tudo direitinho?
Nunca fui batizada e faz mais de dez anos que não entro em uma igreja, nunca tive fé em nada, nem sei o que significa metade dos nomes de rituais católicos.
-- Claro.
-- Seus pais também vão a igreja?
-- Claro, toda a minha família vai. - por que eu não disse a verdade desde o início?
-- Que bom, isso é muito importante...
E ela volta a falar do mesmo que estava falando antes e que nada tinha a ver com religião. Para a minha eterna salvação.

* * * * *

Um rapaz me pede para ajudá-lo a enviar um e-mail. Começo a explicar para ele, inocentemente. Estou de pé ao seu lado, olhando para a tela do computador enquanto explico como fazer, até que percebo que ele está me olhando fixamente, de cima a baixo, com a cara de safado mais detestável que eu já tinha visto. Me afasto alguns passos, fingindo que nada estava acontecendo, e pergunto se ele entendeu tudo o que eu disse. Ele demora um pouco para responder porque está me olhando dos pés à cabeça, dá um sorrisinho maníaco, e balança a cabeça, dizendo que sim. Eu digo um "ah, que bom", e vou me afastando, quando ele me chama de novo, dizendo:
-- Você não vai mandar o email pra mim, não?
-- Não. - eu digo, em um tom que faz algumas pessoas me olharem assustadas - Eu já te ensinei, agora vocẽ faz.
Saio dali e fico lá fora, conversando com os meninos. O mesmo rapaz vai lá me chamar para ajudar em outra coisa, mas um dos meninos vai atende-lo. Só que ele percebe que eu estou indo embora, e dois minutos depois sai e fica me esperando do lado de fora, sei lá para que. Eu demoro uns quinze minutos para ir embora, e vou embora por outro caminho, escoltada por dois amiguinhos, que são muito fortes e corajosos e me protegeriam com seus super-poderes. O maníaco tarado fica me olhando, mas não me segue, e eu vou embora feliz e contente.

* * * * *

O mesmo maníaco tarado do episódio anterior aparece, logo de manhã cedo, e para ao lado da minha mesa. Eu finjo que não é comigo, e continuo conversando com outra pessoa que tinha ido me perguntar alguma coisa. Ele continua parado ao lado da mesa, me olhando e sorrindo de uma forma completamente tresloucada. Quando a outra pessoa vai embora, eu não tenho outra opção a não ser dar atenção ao maníaco, mas faço isso olhando apenas brevemente para ele, e logo virando o olhar para o computador, como se estivesse fazendo alguma coisa muito importante.
-- Pois não?
-- Oi. - ele fala, e parece que quanto mais empolgado ele fica, mais louco ele se torna.
-- Bom dia. - uso minha voz mecãnica para falar.
-- Você tem namorado?
Olho para ele por um breve momento.
-- Sim. - mentira maior que essa nunca pronunciei.
-- Ah tá. - o sorriso dele vacilou, mas ele ainda tentou se manter firme - É aquele cara grande, né?
Ele estava falando de um dos meus amigos (porque as pessoas sempre acham que tenho algum tipo de relacionamento amoroso com meus amiguinhos?). Dessa vez olhei para ele de forma mais demorada, e respondi em um tom irritado.
-- Não, ele não é daqui.
-- Ah. - ele ficou um tempo quieto - Qual o nome dele?
-- Eu não vou dizer.
Ele ainda fica algum tempo ali, parado, mas eu passo a agir como se ele não existisse. Finalmente ele desiste, e sai dali. E nunca mais me importuna.