terça-feira, 30 de julho de 2013

Matar ou Não Matar, Eis a Questão

Quem acompanha este blog (alguém acompanha este blog?) e/ou o meu outro blog já deve ter percebido que eu tenho algumas opiniões favoráveis à certos tipos de violência em alguns contextos. É claro que existem casos e casos, mas geralmente não sinto peninha quando um bandido leva uma bala na cabeça, ou quando vejo uma notícia do tipo "adolescente é morto em baile funk". Mas há algum tempo atrás, conversando com algumas pessoas, me foi colocada a seguinte situação: um ladrão entra na sua casa e ameaça sua família, e você tem uma arma e tem a chance de mata-lo se quiser, o que você faria?
Minha resposta foi imediata: eu o mataria. Não pensei antes de responder, e mesmo pensando, minha resposta não mudaria. Mas para a minha surpresa - porque eu achava que o grupo com quem eu conversava tivesse uma opinião parecida com a minha - as pessoas ficaram bastante perturbadas com o que eu disse - ou talvez com a forma tranquila e sem remorso como eu disse aquilo. Seguiu-se um diálogo mais ou menos assim:
-- Mas se você tivesse condições de impedir ele de te fazer mal só ferindo ele, você ia escolher ferir ou matar?
-- Matar.
-- Mesmo que não fosse necessário?
-- Não. Mas se fosse necessário, eu o mataria mesmo que pudesse existir outra forma de me livrar da situação.
-- Mas será que na hora você teria coragem de verdade?
Mas será que na hora você teria coragem de verdade? Mas como é que eu vou saber? A gente só sabe como vai reagir a uma situação quando passamos por ela. Pode ser que na hora eu entrasse em pânico e não tivesse coragem. Pode ser que, mesmo que matasse o infeliz, ficasse me remoendo de culpa pelo resto da vida. Tudo o que posso dizer é que acho que não me importaria em matar alguém se precisasse, e definitivamente não vejo problema nenhum em tomar medidas extremas para se defender ou defender alguém.
Algumas pessoas me questionam sobre a questão do certo e errado. É certo matar um criminoso? É certo matar uma pessoa que te oferece risco? É certo que exista pena de morte? Eu não sei se é certo, e mesmo que diga minha opinião, de que ela vale? Tudo o que posso dizer é que acho que existem coisas que estão muito além do certo e errado.
Vamos colocar a situação hipotética de que um cara qualquer fizesse alguma coisa muito ruim comigo ou com alguém que eu gostasse (não vou ficar procurando exemplos, usem a imaginação). Vamos supor ainda que de alguma forma esse cara caísse nas minhas mãos e eu tivesse a opção de a) entregar ele pra polícia inteirinho; b) entregar ele pra polícia com alguns pedaços faltando, afinal um braço ou uma perna a menos não é algo tão ruim; ou c) matar ele, com boas chances de não ser presa. Eu posso dizer com absoluta convicção que escolheria a alternativa c. Não é que eu ache "certo" matar por vingança. Não acho. Também não acho que é papel da polícia fazer execuções sumárias, como muitas vezes acontece. Mas eu faria, porque é o que precisaria fazer. É o que precisaria para me sentir bem, para fechar o assunto etc. Não é mais uma questão de moral. Sei que existem pessoas que abraçam o assassino da filha e dizem "eu te perdoo", e acho que essa pessoa está em um grau de evolução muito superior, mas eu não consigo fazer isso.
Porque algumas coisas vão muito além de certo e errado. Algumas coisas são pura questão de justiça. Do que você sente que precisa ser feito.

* * * * *

Mas tem uma coisa que eu não faria: mandar matar alguém. Se for me sujar, então que suje apenas as minhas mãos. Se não tiver como fazer, ou se tiver medo de fazer, ou simplesmente não for capaz, então não vou envolver terceiros.
Por isso que não sou a favor da pena de morte. Assassinato é uma questão pessoal demais, entre quem mata e quem morre. Matar oficialmente é tirar o direito à vítima de ver o rosto de seu assassino.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Só Mais um Dia na Cidade

Era meio da tarde e eu estava voltando a pé para casa, ouvindo música e pensando em coisas aleatórias, quando avistei duas crianças mais a frente pedindo esmola em uma casa. Eram crianças pequenas - pequenas até demais, a mais velha não parecia ter mais de sete anos - e estavam sujas, usando roupas rasgadas, a típica cena deprimente de cidade grande. Eram um casal, e a menina era uns dois anos mais velha do que o menino. Provavelmente irmãos.
Aquela cena me irritou profundamente, como sempre acontece nessas situações. Provavelmente, pensei, eles estavam ali pedindo esmolas a pedido de algum adulto. Provavelmente não ficariam com nada do que conseguissem. Mesmo que ficassem com algumas moedas, muito provavelmente as usariam para comprar drogas ou coisa do tipo. Eles começam cedo, essas crianças de rua. Foi assim que eu pensei, quando os vi, logo à frente.
Eu continuei andando, e tentei desviar deles, fingir que não tinha visto, que estava com pressa, mas foi inútil. Os dois vieram para perto de mim, e a menina já foi estendendo as mãozinhas e pedindo dinheiro - qualquer dinheiro moça, pode ser dez centavos, cinco centavos. A primeira coisa que reparei foi que as mãos dela eram minúsculas e estavam imundas. A segunda foi que ela era tão pequena que eu poderia levantá-la só com uma mão, e o menino era menor ainda. E a terceira coisa que reparei foi que o menino carregava uma sacola com dois pães murchos e uma maçã meio estragada, provavelmente doações.
Eu não gosto de crianças. Não tenho nada contra as crianças, mas não tenho jeito com elas, não sei conversar, ou como lidar. São bichinhos imprevisíveis, e não gosto de coisas que não posso prever. Por isso, ser abordada daquela forma por crianças, ainda mais me pedindo dinheiro, foi algo que me irritou muito. Tive vontade de dar uma bronca nelas, dizer coisas como eu sei que você vai comprar cigarro com isso ou cadê sua mãe? Quem te mandou vir pedir esmola?, mas não disse nada disso. Só falei "não tenho dinheiro não, tá?", com um ar meio impaciente, e continuei andando. As duas crianças continuaram me seguindo, e novamente foi a menina quem falou: "você pode então dar alguma coisa pra gente comer? Pode ser coisa velha mesmo".
Aquilo me pegou de surpresa e me fez sorrir. Então eu estava enganada, eles queriam mesmo o dinheiro para comprar comida. Nem todas as coisas no mundo são ruins, afinal. Falei que tinha comida sim, mas que eles teriam que esperar ali em frente (estávamos já em frete à minha casa), enquanto eu pegava algo para eles.
Entrei em casa - nessa época eu morava em uma república - e fui futucar a geladeira do meu quarto. Peguei uma pera que eu havia cortado mas não comera, e que iria acabar estragando. Como eles eram dois, peguei outra pera, essa inteira. Tinha pouco menos da metade de um pacote grande de pão de forma, e como só pão não é muito legal, peguei um pouco de queijo e mortadela que estavam em uma bandeja e fiz alguns sanduíches. Peguei também duas bananas e um pacote de biscoito pela metade. Coloquei tudo em uma sacolinha, e levei para eles.
Em nenhum momento, enquanto pegava essas coisas, parei para pensar no que estava fazendo. Eles só tinham me pedido comida, e como sei que eles não deviam comer com muita frequência, atendi ao pedido deles da melhor forma que pude. Em nenhum instante me passou pela cabeça a possibilidade de dar um pão murcho, um resto de comida ou alguma coisa estragada para eles. Eu estava tão alheia ao que estava acontecendo, que a reação deles me pegou completamente de surpresa.
Eu entreguei a sacolinha para eles e falei: "Tem uns sanduíches de pão com queijo e mortadela aí. Tem também umas frutas". Vi que a menina olhava as coisas meio perplexa, e complementei: "Tem banana, tem pera...", torcendo para que eles gostassem de fruta e não jogassem tudo no primeiro lixo que vissem.
A menina soltou uma exclamação (eu nunca tinha entendido essa expressão até presencia-la) e disse "Pera!", com o mesmo tom em que eu diria "Ouro!". Olhou para mim, olhou para as frutas, olhou para mim de novo. Abriu a outra sacolinha, tirou um sanduíche, olhou dentro e falou "É queijo mesmo!". O menininho não quis saber de admirar as coisas, e começou a comer um sanduíche. A menina olhava de mim para as coisas com a expressão mais maravilhada que eu já vira. Ficou repetindo "obrigada, moça!" um milhão de vezes, enquanto o menino falava "eu nunca comi pera" e ela "eu também não!".
Eu não gosto de crianças.
Mas por algum motivo, me deu uma vontade enorme de pegar aqueles dois, levar para dentro da minha casa, e não deixar eles saírem nunca mais.
"É pra vocês isso", eu disse. "Não deixa ninguém tomar de vocês". Porque eu sei que, se crianças mais velhas encontrassem eles com aquelas coisas, iam tentar tomar deles de todas as formas, e eu não tinha como impedir isso. A menina disse "Pode deixar", agradeceu de novo, e os dois saíram dali praticamente dando pulos de alegria. Eu entrei em casa sem saber se ria ou chorava.

* * * * *

Isso foi há alguns anos. Muitos dias quentes e frios se passaram, muita chuva caiu, e fico pensando naqueles dois. Se eles têm alguém que dê uma pera para eles. Ou pelo menos um sanduíche. Se hoje, enquanto está chovendo, eles estão embaixo de um teto, dormindo embrulhados em um cobertor.
Fico pensando em como é possível que alguém olhe para aqueles dois e não sinta nada. Ou como é possível que uma criança tão pequena, suja, maltratada, te implore um pedaço de pão e você dê a comida que estava prestes a jogar no lixo. Ou como alguém pode gastar uma grande quantia em tratamentos para engravidar, enquanto aqueles dois precisam tanto de alguém que os pegue no colo e cuide deles.
Eu não gosto de crianças, sabe. Mas eu queria poder pegar essas crianças e fazer com que elas não tivessem que passar por isso. Eu não sei dizer o sentimento que tenho quando vejo essas crianças. Como é possível que alguém não sinta o mesmo? Como é possível que eu, que não tenho nada, dê tudo o que tenho por essas crianças, e quem tem muito não dá nada? Como é possível que alguém tenha filhos, enquanto tem tanta criança abandonada pelo mundo?
Imagine o maior frio, a maior dor e a maior fome que você já sentiu. Não é nada, comparado ao que essas crianças sentem.

* * * * *

Se um dia eu tiver dinheiro suficiente, uma coisa que faço questão de fazer é dar abrigo ao maior número de crianças que conseguir. Não serei uma mãe para elas, porque não sei cuidar nem de mim mesma, quanto mais dos outros; mas se elas vão sofrer, então que soframos juntas.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Primeiras Aventuras no País do Álcool

Eu tinha treze anos, Luli tinha doze. Era uma festa do Dia do Trabalhador, e eu adorava essas festas: começavam de dia e iam até tarde - ou o que era tarde para mim naquela época - tinham muita comida, muita gente, muita bagunça e eram uma ótima oportunidade de fazer coisa errada.
Não me lembro há quanto tempo estávamos na festa, mas provavelmente havíamos chegado de tarde, e já era noite. Estávamos correndo atrás de algum menino (não me lembro qual, provavelmente mais de um) quando alguém (provavelmente eu) teve a brilhante, a genial ideia de fazer a coisa mais louca e proibida que conseguíamos imaginar: beber uma cerveja.
Nós nunca havíamos sido um exemplo de bom comportamento, mas éramos bastante inocentes. Hoje, a maioria das meninas de treze anos já tem um ou dois filhos, mas naquela época as coisas eram diferentes. Para mim, que nunca havia provado nada que tivesse álcool, aquela cerveja seria muito mais do que uma cerveja; seria um passo rumo a um mundo proibido, o mundo dos "mais velhos", o mundo da contestação e da rebeldia.
Decisão tomada e dinheiro arrumado (não tenho a menor ideia de onde o dinheiro veio), vinha agora o grande problema: como comprar a cerveja? Não só éramos menores de idade, como éramos muito menores de idade. Além do mais, meu pai era conhecido no bairro inteiro. E se o moço do bar se recusasse a vender para a gente? Se nos desse uma bronca? Se contasse para o meu pai? Eu já imaginava um "você não tem vergonha nessa cara menina?" vindo do cara que vendia a cerveja, e meu pai ou meus tios brotando do nada ali e me carregando para casa sob ameaças.
Ficamos paradas próximo ao vendedor de bebidas, tensas, falando "vai você! Não, você!" uma para a outra. Devemos ter ficado uns bons minutos ali, e tenho a impressão de que as pessoas ao redor estavam se divertindo assistindo àquelas duas crianças quase morrendo para comprar a primeira cerveja. Luli usou o argumento de que eu era mais velha, eu usei o argumento de que ela parecia mais velha. Ficamos nesse empurra-empurra até que decidimos: "vamos juntas!". E fomos.
Chegamos no balcão, suando frio. O vendedor olhou para nós com um ar ameaçador. Nós tremíamos. Mostramos o dinheiro e dissemos juntas "Eu quero uma cerveja!". Eu estava tão nervosa que via a cena em câmera lenta. O vendedor disse, e suas palavras ecoaram em meus ouvidos:
"Skol ou Brahma?"
Nós duas tínhamos tanta certeza do esporro que viria, que ficamos sem ação. Demoramos um pouco para entender o que ele havia dito, até que uma de nós disse "Brahma", aleatoriamente. Ele entregou a cerveja, nós pagamos e saímos dali quase correndo.

* * * * *

Beber a cerveja foi outra novela. No primeiro gole, eu fiz tanto drama que parecia estar prestes a beber algo potencialmente explosivo. Acho que tinha medo de ficar instantaneamente bêbada. Peguei um canudinho (!), molhei na cerveja, coloquei uma gota no dedo e provei. Não achei ruim nem bom (como alguém poderia achar qualquer coisa provando uma gota?), então tomei um gole - de canudinho - e aí sim, achei horrível. Insisti em beber mais um pouco, mas quem bebeu a maior parte foi a Luli.
Detalhe: na volta para casa, meu pai foi me buscar de carro. E qual foi a primeira coisa que eu fiz quando entrei no carro? Foi contar sobre a cerveja, claro! Eu estava tão empolgada que nem me importei com a bronca, só queria que o mundo inteiro soubesse que eu era uma adolescente rebelde que bebia cerveja. Meu pai não me deu bronca (ele deve ter rido muito de mim), mas me deu aqueles conselhos básicos que ninguém segue, sobre não beber e etc.

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Se hoje eu visse alguém vendendo bebida para duas crianças tão novas, acho que eu daria uma surra no cara.

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Acho que eu empolgada por "ter bebido e não ser mais criança" era a imagem clássica da criança feliz.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Sakura Cardcaptor - Pensamentos Pós-Infância

Há muito tempo eu venho querendo escrever sobre Sakura Cardcaptor. Esse foi um dos animes mais marcantes na minha vida; o assisti no final da minha infância, por volta dos treze anos, e era fanática por ele ao nível do exagero. Mas não vou falar sobre minha paixão louca por ele, nem sobre o lado fofo do anime. Vou falar sobre aquelas coisas que, aos treze anos, eu jamais perceberia, ou só percebia de forma muito superficial. Vou falar sobre o lado "estranho" de Sakura Cardcaptor.
Em primeiro lugar, desnecessário dizer, esse é um anime infantil. Mas os japoneses têm um conceito bem, digamos, diferente do que é ou não é infantil (tanto que vários animes que para eles não têm nada demais acabam tendo cenas censuradas quando chegam no ocidente). Embora de uma forma bem discreta (tanto que eu não percebia quando era criança), Sakura tem elementos bastante bizarros que me deixaram ligeiramente perturbada quando revi o anime e reli o manga depois de adulta.
Primeiro, o elemento estranho mais "famoso" de Sakura: o relacionamento Yukito-Touya. Até eu, sonsa que era, percebia que tinha alguma coisa ali. O manga é mais explícito nisso do que o anime, mas em qualquer um dos dois, percebe-se claramente que os dois amigos já começam a história com um sentimento que vai muito além da amizade, e acabam a história como namorados. No manga, desde muito cedo Touya demonstra de forma bastante clara que é apaixonado por Yukito; este, por sua vez, revela verbalmente seus sentimentos para Sakura, em uma cena em que ela pergunta se ele gosta do irmão dela e ele confirma.
Mas eles não são os únicos personagens "gays" (entre aspas, porque a forma como é mostrado esses relacionamentos é algo tão peculiar, que parece mais relacionado a "amor entre almas" do que a homossexualismo).
Tomoyo é apaixonada por Sakura, e no manga ela diz isso de forma quase explícita, em uma cena em que as duas dizem uma para a outra "eu gosto muito de você", e quando a Sakura sai, Tomoyo pensa "é uma pena que a Sakura esteja pensando em uma forma diferente de gostar...". A mãe da Tomoyo parece ter sido apaixonada por sua prima Nadeshiko, mãe de Sakura, mas isso não é mostrado de forma explícita (embora seja muito fácil perceber). E Shaoran se apaixona a primeira vista por Yukito, embora depois se apaixone pela Sakura.
Essa parte "gay" do anime é mostrada de uma forma tão natural que chega a ser estranho. É fato que os orientais lidam com questões homossexuais de forma um pouco mais tranquila do que nós, mas não tanto assim, e se alguém assistir Sakura achando que lá é assim que as coisas acontecem vai ter uma grande decepção. Nesse ponto, acho que o anime quis passar a imagem de como o mundo deveria ser - você se apaixona por uma pessoa, não por um homem ou uma mulher. Gosto muito dessa visão (embora eu mesma só me apaixone por homens e acho que está muito bom assim).
Saindo dessa parte gay, temos a parte pedófila do anime. Beira o surreal o relacionamento entre Rika, amiguinha de Sakura, e o professor Terada, personagem que deve ser uns vinte anos mais velho do que ela. No anime, o relacionamento é mais discreto - parece ser apenas uma menininha de dez anos apaixonada por um professor - mas no manga a coisa fica muito séria, porque ela é correspondida. Sim, ela  é uma criança que gosta de um cara que deve ter idade para ser pai dela, e é correspondida! Existem várias cenas de encontros escondidos entre os dois, diálogos comprometedores, o cara chega a dar um anel de noivado para ela. É pedofilia aberta e explícita, e o mais bizarro é que o manga mostra isso como um relacionamento bonitinho!
Outra coisa muito estranha no anime (embora não tão questionável) é o relacionamento do pai da Sakura com a família da esposa. É mostrado que o casamento de Fujitaka e Nadeshiko foi contra a vontade da família dela, e que por isso eles perderam o contato com os parentes (os únicos parentes que aparecem são o avô e a prima de Nadeshiko, mas não se sabe se há outros). O bizarro começa quando a Sakura encontra, por puro acaso, com o bisavô, e ninguém diz para ela quem ele é! Ela faz amizade com ele como faria com qualquer velhinho simpático, e não tem a menor ideia de que ele é o avô de sua mãe.
Ainda na parte da amizade da Sakura com seu bisavô: como já foi dito, ela o conhece sem saber quem ele é. Mas isso não a impede, em nenhum momento, de agir com total imprudência em relação a ele, entrando em sua casa, lanchando com ele e trocando de roupa, quando ele pede que ela coloque uma roupa toda bonitinha (que era da mãe dela, mas ela não sabe). Gente, que tipo de educação o pai dessa menina deu para ela? Aos dez anos, se um completo estranho me chamasse para entrar na casa dele e me mandasse trocar de roupa, eu ia sair correndo gritando "tarado!". Fujitaka se mostra ainda mais relapso ao permitir que a filha ande por aí entrando na casa de estranhos (pelo que entendi, em um primeiro momento ele não sabia que a pessoa que dera a roupa para ela fora o avô de Nadeshiko).

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Analisando a história de forma um pouco mais profunda, é interessante perceber que nenhuma família mostrada é "normal". Arriscaria dizer que tanto Sakura quanto Tomoyo têm famílias bastante problemáticas.
Da parte da Tomoyo, é bem fácil perceber um sério problema familiar ali. Em primeiro lugar, o pai de Tomoyo não só nunca aparece, como sua existência mal é citada. Acredito que ele e a mãe de Tomoyo vivem separados, mas o fato de a menina em nenhum momento mencionar a existência do pai mostra que temos aí uma relação nada boa. Além disso, sua mãe tem uma obsessão em tornar a menina parecida com sua amada prima Nadeshiko. Ou seja, temos aqui uma garotinha milionária que cresceu sem um pai (e na melhor das hipóteses, tendo um relacionamento neutro com ele), com uma mãe que a trata mais como uma boneca (ou um objeto que ela pode modificar livremente) do que como filha, e que acaba desenvolvendo uma super dependência por Sakura.
Sakura, apesar de aparentemente ter uma família linda e quase perfeita (um pai super dedicado, um irmão que a ama muito) também tem problemas familiares. Além de ter perdido a mãe quando era muito pequena, o pai de Sakura me parece um pouco ausente (ou talvez apenas relapso). Por exemplo, como eu já disse, há o episódio em que ela entra na casa de um "desconhecido" (o avô dela) e Fujitaka não demonstra a menor preocupação. Sakura fica sozinha em casa com muita frequência; lembrando que ela é uma criança de apenas dez anos, e que, pelo que a história conta, essa situação acontece há tempos. Há vários episódios em que ela sofre pequenos acidentes enquanto limpa a casa, e embora sejam cenas engraçadas, se pararmos um pouco para pensar logo percebemos que o que foi um tombinho bobo poderia muito bem ter sido algo bem mais sério. Não acho que os autores não pensaram nisso, e fico me perguntando o que eles queriam passar (sinto que há uma interpretação mais profunda sobre toda essa situação de Sakura, mas não consigo alcança-la).

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Uma coisa engraçada é que Sakura parece fazer questão de mostrar famílias incompletas: Sakura perdeu a mãe e vive só com o pai e o irmão; Yukito não tem pais, e vive só com os avós (ou acha que vive); Tomoyo não tem pai. A família dos outros personagens não é mostrada, mas não é mostrada nenhuma família "completa".
Pensando nisso agora, que eu me lembre também não é mostrado nenhum casal adulto. Todo mundo se separou por algum motivo (morte, distanciamento ou motivos inexplicados). Embora o grande foco da história seja o amor, parece que todo o amor mostrado é sempre algo incompleto, impossível ou não correspondido.

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Do meu ponto de vista, os personagens adultos de Sakura parecem bastante trágicos. Já as crianças parecem realmente ser a "última esperança", parece que o tempo todo elas estão à mercê de seguirem os mesmos passos dos adultos mas têm a chance de seguir um rumo melhor. Mas essa é uma interpretação bem subjetiva.

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A personagem Sakura é tão fora da realidade que chega a ser absurdo. Tento me lembrar de como eu era aos dez anos, para poder fazer uma comparação, e realmente acho que não chegava nem perto de ser tão desligada e desinteressada da vida quanto ela. Ela não percebe os problemas relativos à própria família, não percebe que o irmão pode usar magia (mesmo Kero a alertando sobre isso), não percebe que ele sabe sobre as Cartas Clow, nunca pergunta nada para Tomoyo a respeito da família dela, não demonstra o menor interesse em saber nada sobre o passado de seus pais, não percebe que Yukito está desaparecendo, não percebe que Kero e Yukito compartilham segredos, não percebe que Shaoram e Tomoyo gostam dela, não percebe que Eriol esconde algum segredo, e se eu for rever todos os episódios vou fazer uma lista gigantesca de coisas que ela não percebe ou não demonstra interesse em saber. Mesmo em relação às Cartas, ela não demonstra o menor interesse em saber mais sobre elas, sobre as personalidades delas, ou sobre o passado de Clow.
Até que, em um momento mágico de extrema lucidez, quando ela se declara para Yukito e ele diz que gosta de outra pessoa, ela fala "é do meu irmão, não é?". Tudo bem que era fácil perceber, mas havia tantas coisas que eram fáceis de perceber e ela não percebia, que é um choque ver ela falar aquilo com tanta naturalidade.
Eu me pergunto em que momento Sakura começou a desconfiar que havia algo mais na amizade de Yukito e Touya. Quando ela tem a conversa reveladora com Yukito, a forma como ela fala aquilo é natural demais; fica claro que aquilo era algo que já havia passado pela cabeça dela tantas vezes que ela já havia se acostumado com a ideia. O curioso é que em nenhum momento anterior ela demonstra estar desconfiada de algo, o que talvez indique que ela não é tão distraída quanto parece. Pensando agora, talvez ela saiba (ou desconfie) de muito mais coisa do que o anime mostra.

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Eu era apaixonada pelo Yukito.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Médicos

No geral, eu não gosto de médicos.
Acho engraçado pessoas que "têm" um médico, ou quem considera algum médico como um amigo. Médico é médico, e a maioria dos que eu conheço (infelizmente conheço muitos) são pessoas de quem quero a maior distância possível fora do consultório.
É estranha a visão de médico como uma "pessoa que salva vidas". Eu vejo mais como "pessoa que ganha dinheiro às custas do sofrimento dos outros". Porque, com raras e belas exceções, você pode estar morrendo na frente do médico, mas se não tiver dinheiro para pagar o atendimento, ele vai te deixar morrer.
Às vezes, ele te deixa morrer mesmo quando você paga o atendimento.
Eu tenho certa antipatia por médicos de qualquer tipo desde muito tempo. Por isso, fiquei bastante irritada com a comoção criada pela decisão do governo de trazer médicos estrangeiros para os lugares do Brasil em que nenhum médico brasileiro quer ir. Eu concordo plenamente que trazer médicos de fora não vai solucionar os problemas da saúde pública, mas alguém acredita que os médicos estão realmente preocupados com a saúde pública?
Se médico se preocupasse com a saúde pública, ele não te atenderia em menos de cinco minutos num posto de saúde.
Se médico se preocupasse com os pacientes, ele não diria coisas como "se quer atendimento melhor, vai no meu consultório particular".
Se médico se preocupasse minimamente com a vida de quem ele está atendendo, ele nunca daria um diagnóstico errado por pura desatenção.
O que eu tenho observado, em anos vagando como uma alma penada por consultórios, é que os médicos não têm, de uma forma geral, nenhum tipo de "ligação" com os pacientes. Olham para nós da mesma forma que eu olho para um computador quebrado: se der pra consertar eu conserto, se não der jogo fora. Ou: se me pagar eu conserto, se não pagar, se vira.
Por algum motivo misterioso, ser médico é ser elite. Conheço famílias de médicos, será que só eu que acho a ideia de todo mundo da família seguir a mesma profissão uma coisa no mínimo estranha? Alguém mais acha totalmente louco mais de trinta pessoas na mesma família terem a mesma vocação? Que sorte, né, meus pais são médicos, meus irmãos são médico e eu também nasci com dom para medicina! Incrível!
Médico é elite. E ser médico, em uma família de médicos, é uma obrigação. Agora imagine que tipo de médico irá se tornar uma pessoa que foi coagida a seguir essa profissão. Aliás, não precisa imaginar: entre em qualquer consultório e veja. Veja o péssimo atendimento, o ar arrogante, o dinheiro ganho às custas do sofrimento alheio. Isso é ser médico. Eu teria vergonha de seguir essa profissão, em uma realidade como essa.
Médicos de verdade, médicos que podem ter orgulho de ser chamados assim, são aqueles que realmente se preocupam com seus pacientes, sem se importar se eles têm ou não condições de pagar. São aqueles que vão lá para a Amazônia, no meio da floresta, usar o conhecimento que têm para ajudar o maior número de pessoas que puderem - e dane-se as más condições de trabalho. São aqueles que trabalham no SUS, mas fazem tudo o que podem para realmente atender e tratar os pacientes. São aqueles que dão a vida para salvar a vida dos outros, porque esse é dom que eles têm. Um médico de verdade é aquele que é capaz de qualquer coisa para salvar uma vida, sem esperar nada em troca.
Existem pouquíssimos médicos de verdade.
Esses outros, esses médicos que infestam as clínicas particulares e os postos de saúde, esses que deixam pessoas morrerem na frente deles e não fazem nada, esses que olham para você e vêem seu dinheiro, esses que se tornaram médicos pelo dinheiro e pelo status - esses, eu não respeito.

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Desnecessário dizer, eu tive péssimas experiências com médicos, que incluem desde mal atendimento a erros médicos fatais; mas não falarei de nada disso, pelo menos não agora.

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A quem possa dizer "Você quer que médico trabalhe de graça? Médico tem que sobreviver também", minha resposta é: problema seu. Se vai viver disso, então não seja hipócrita. Assuma que não dá a mínima para a vida dos seus pacientes, e que deixaria eles morrerem se não fosse pago. É bom deixar as coisas claras quando estamos falando de salvar a vida de alguém.

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Aos poucos médicos realmente bons que existem: eu admiro muito vocês. Se eu gostasse um pouquinho mais de biologia e química, certamente teria escolhido essa carreira, e morreria de fome porque trabalharia de graça.

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Pensando nisso agora, minha profissão é completamente inútil para o mundo.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Um Deus Particular

Eu leio um manga chamado 07-Ghost, e entre vários conceitos fantásticos que ele contém, um dos que mais gosto é o de que certas pessoas se tornam um "deus" para outras.
A princípio eu estava vendo isso apenas como uma peculiaridade da história - e, até certo ponto, um exagero: afinal, ninguém precisa de outra pessoa para viver, certo? Uma pessoa se tornar a razão da sua vida é algo um pouco extremo. Mas, pensando sobre isso, aos poucos comecei a achar que não só era algo tolerável, como era algo que realmente acontecia.
As vezes, a gente conhece uma pessoa que a princípio é apenas uma pessoa comum, mas de repente, as vezes sem uma razão específica, essa pessoa se torna especial. Se torna tão especial que queremos ficar perto dela o tempo todo, queremos conversar com ela, queremos ser ela. Admiramos as coisas que ela faz e os passos que ela dá, admiramos nela coisas que normalmente nem percebemos nos outros. Essa pessoa acaba se tornando uma espécie de ídolo, e quando percebemos, estamos lhe dedicando todo o nosso ser, de corpo e alma. Ela passa a ser o centro da nossa existência.
O ser humano precisa de deuses particulares. Ídolos.
Quando nascemos, nossos pais são nossos deuses. Eles detêm todo o poder, todas as decisões, e nós os amamos por isso. Eles representam carinho e proteção, são o símbolo do que queremos ser um dia. Possuem um conhecimento e uma sabedoria muito superior às nossas. Por boa parte das nossas vidas, nossos pais são como deuses para nós.
Mas então crescemos, e nossos deuses se tornam humanos. Nossos ídolos se mostram tão frágeis quanto nós. Passamos então a nos sentir novamente sozinhos, desprotegidos - perder um deus é como nascer sem que ninguém te segure, é se encontrar perdido em um mundo estranho. Passamos, então, a procurar um novo deus, algo ou alguém que substitua o vazio deixado por nossos pais. E aí muita coisa pode acontecer.
Podemos entrar para uma religião.
Podemos passar a usar drogas.
Podemos nos tornar fãs de alguém ou de alguma coisa.
Podemos nos apaixonar.
Mas as vezes, algumas vezes, nós encontramos alguém - um amigo, um amor, um desconhecido, tanto faz - que se torna tão importante, mas tão importante, que passa a guiar cada passo das nossas vidas. Não é um amor romântico, nem precisa de retribuição - essa pessoa, na verdade, não precisa sequer saber da nossa existência. Ficamos felizes apenas por ela existir.
A parte mais interessante disso é quando nós nos tornamos o deus de outra pessoa. Na maioria das vezes, demoramos para perceber que somos tudo o que importa no mundo para alguém. Afinal, damos pouca importância a nós mesmo, e parece quase impossível que outra pessoa nos ache o símbolo da perfeição.
Mas isso acontece. E acontece mais do que a gente imagina.
Ser admirado, ser amado, ser importante para outra pessoa - isso é uma responsabilidade enorme. Não por termos que ser perfeitos, mas sim porque temos que continuar a ser nós mesmos, e aceitar as consequências que nossos atos terão não só sobre as nossas vidas, mas também nas vidas de quem nos adora. Passamos a saber que, se falhamos em algo, podemos estar fazendo desabar o mundo de outra pessoa.
Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas.
Sendo o deus de alguém, você pode salvar essa pessoa. Porque você é uma das poucas pessoas que ela vai realmente ouvir. Porque ela vai tentar ser igual a você, vai tentar seguir seus passos. E porque, se você disser que a ama, você vai estar dando uma alegria a ela que em pouquíssimas vezes ela vai ter a chance de sentir.

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Eu sei que sou o deus de algumas pessoas - sei de pelo menos três delas. E isso é uma coisa incrível mesmo.

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Fico pensando e pensando, e não consigo descobrir quem é o meu deus. Talvez eu não tenha um no momento.
Eu ia dizer que não lembro de ter tido um deus durante a minha infância ou adolescência, mas acabo de descobrir que eu tive sim. Alguém que foi tão importante para mim, que ouso dizer que foi graças a ele que escolhi a profissão que tenho hoje, entre várias outras coisas.
Mas o meu "deus" mais marcante foi sem dúvidas o U2. Essa banda foi tão importante na minha vida, que dedico a ela tudo o que eu conquistei na minha vida entre os dezoito e os vinte e quatro anos. Sem esse meu deus particular, eu não seria metade do que sou hoje.