Há muito tempo eu venho querendo escrever sobre Sakura Cardcaptor. Esse foi um dos animes mais marcantes na minha vida; o assisti no final da minha infância, por volta dos treze anos, e era fanática por ele ao nível do exagero. Mas não vou falar sobre minha paixão louca por ele, nem sobre o lado fofo do anime. Vou falar sobre aquelas coisas que, aos treze anos, eu jamais perceberia, ou só percebia de forma muito superficial. Vou falar sobre o lado "estranho" de Sakura Cardcaptor.
Em primeiro lugar, desnecessário dizer, esse é um anime infantil. Mas os japoneses têm um conceito bem, digamos, diferente do que é ou não é infantil (tanto que vários animes que para eles não têm nada demais acabam tendo cenas censuradas quando chegam no ocidente). Embora de uma forma bem discreta (tanto que eu não percebia quando era criança), Sakura tem elementos bastante bizarros que me deixaram ligeiramente perturbada quando revi o anime e reli o manga depois de adulta.
Primeiro, o elemento estranho mais "famoso" de Sakura: o relacionamento Yukito-Touya. Até eu, sonsa que era, percebia que tinha alguma coisa ali. O manga é mais explícito nisso do que o anime, mas em qualquer um dos dois, percebe-se claramente que os dois amigos já começam a história com um sentimento que vai muito além da amizade, e acabam a história como namorados. No manga, desde muito cedo Touya demonstra de forma bastante clara que é apaixonado por Yukito; este, por sua vez, revela verbalmente seus sentimentos para Sakura, em uma cena em que ela pergunta se ele gosta do irmão dela e ele confirma.
Mas eles não são os únicos personagens "gays" (entre aspas, porque a forma como é mostrado esses relacionamentos é algo tão peculiar, que parece mais relacionado a "amor entre almas" do que a homossexualismo).
Tomoyo é apaixonada por Sakura, e no manga ela diz isso de forma quase explícita, em uma cena em que as duas dizem uma para a outra "eu gosto muito de você", e quando a Sakura sai, Tomoyo pensa "é uma pena que a Sakura esteja pensando em uma forma diferente de gostar...". A mãe da Tomoyo parece ter sido apaixonada por sua prima Nadeshiko, mãe de Sakura, mas isso não é mostrado de forma explícita (embora seja muito fácil perceber). E Shaoran se apaixona a primeira vista por Yukito, embora depois se apaixone pela Sakura.
Essa parte "gay" do anime é mostrada de uma forma tão natural que chega a ser estranho. É fato que os orientais lidam com questões homossexuais de forma um pouco mais tranquila do que nós, mas não tanto assim, e se alguém assistir Sakura achando que lá é assim que as coisas acontecem vai ter uma grande decepção. Nesse ponto, acho que o anime quis passar a imagem de como o mundo deveria ser - você se apaixona por uma pessoa, não por um homem ou uma mulher. Gosto muito dessa visão (embora eu mesma só me apaixone por homens e acho que está muito bom assim).
Saindo dessa parte gay, temos a parte pedófila do anime. Beira o surreal o relacionamento entre Rika, amiguinha de Sakura, e o professor Terada, personagem que deve ser uns vinte anos mais velho do que ela. No anime, o relacionamento é mais discreto - parece ser apenas uma menininha de dez anos apaixonada por um professor - mas no manga a coisa fica muito séria, porque ela é correspondida. Sim, ela é uma criança que gosta de um cara que deve ter idade para ser pai dela, e é correspondida! Existem várias cenas de encontros escondidos entre os dois, diálogos comprometedores, o cara chega a dar um anel de noivado para ela. É pedofilia aberta e explícita, e o mais bizarro é que o manga mostra isso como um relacionamento bonitinho!
Outra coisa muito estranha no anime (embora não tão questionável) é o relacionamento do pai da Sakura com a família da esposa. É mostrado que o casamento de Fujitaka e Nadeshiko foi contra a vontade da família dela, e que por isso eles perderam o contato com os parentes (os únicos parentes que aparecem são o avô e a prima de Nadeshiko, mas não se sabe se há outros). O bizarro começa quando a Sakura encontra, por puro acaso, com o bisavô, e ninguém diz para ela quem ele é! Ela faz amizade com ele como faria com qualquer velhinho simpático, e não tem a menor ideia de que ele é o avô de sua mãe.
Ainda na parte da amizade da Sakura com seu bisavô: como já foi dito, ela o conhece sem saber quem ele é. Mas isso não a impede, em nenhum momento, de agir com total imprudência em relação a ele, entrando em sua casa, lanchando com ele e trocando de roupa, quando ele pede que ela coloque uma roupa toda bonitinha (que era da mãe dela, mas ela não sabe). Gente, que tipo de educação o pai dessa menina deu para ela? Aos dez anos, se um completo estranho me chamasse para entrar na casa dele e me mandasse trocar de roupa, eu ia sair correndo gritando "tarado!". Fujitaka se mostra ainda mais relapso ao permitir que a filha ande por aí entrando na casa de estranhos (pelo que entendi, em um primeiro momento ele não sabia que a pessoa que dera a roupa para ela fora o avô de Nadeshiko).
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Analisando a história de forma um pouco mais profunda, é interessante perceber que nenhuma família mostrada é "normal". Arriscaria dizer que tanto Sakura quanto Tomoyo têm famílias bastante problemáticas.
Da parte da Tomoyo, é bem fácil perceber um sério problema familiar ali. Em primeiro lugar, o pai de Tomoyo não só nunca aparece, como sua existência mal é citada. Acredito que ele e a mãe de Tomoyo vivem separados, mas o fato de a menina em nenhum momento mencionar a existência do pai mostra que temos aí uma relação nada boa. Além disso, sua mãe tem uma obsessão em tornar a menina parecida com sua amada prima Nadeshiko. Ou seja, temos aqui uma garotinha milionária que cresceu sem um pai (e na melhor das hipóteses, tendo um relacionamento neutro com ele), com uma mãe que a trata mais como uma boneca (ou um objeto que ela pode modificar livremente) do que como filha, e que acaba desenvolvendo uma super dependência por Sakura.
Sakura, apesar de aparentemente ter uma família linda e quase perfeita (um pai super dedicado, um irmão que a ama muito) também tem problemas familiares. Além de ter perdido a mãe quando era muito pequena, o pai de Sakura me parece um pouco ausente (ou talvez apenas relapso). Por exemplo, como eu já disse, há o episódio em que ela entra na casa de um "desconhecido" (o avô dela) e Fujitaka não demonstra a menor preocupação. Sakura fica sozinha em casa com muita frequência; lembrando que ela é uma criança de apenas dez anos, e que, pelo que a história conta, essa situação acontece há tempos. Há vários episódios em que ela sofre pequenos acidentes enquanto limpa a casa, e embora sejam cenas engraçadas, se pararmos um pouco para pensar logo percebemos que o que foi um tombinho bobo poderia muito bem ter sido algo bem mais sério. Não acho que os autores não pensaram nisso, e fico me perguntando o que eles queriam passar (sinto que há uma interpretação mais profunda sobre toda essa situação de Sakura, mas não consigo alcança-la).
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Uma coisa engraçada é que Sakura parece fazer questão de mostrar famílias incompletas: Sakura perdeu a mãe e vive só com o pai e o irmão; Yukito não tem pais, e vive só com os avós (ou acha que vive); Tomoyo não tem pai. A família dos outros personagens não é mostrada, mas não é mostrada nenhuma família "completa".
Pensando nisso agora, que eu me lembre também não é mostrado nenhum casal adulto. Todo mundo se separou por algum motivo (morte, distanciamento ou motivos inexplicados). Embora o grande foco da história seja o amor, parece que todo o amor mostrado é sempre algo incompleto, impossível ou não correspondido.
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Do meu ponto de vista, os personagens adultos de Sakura parecem bastante trágicos. Já as crianças parecem realmente ser a "última esperança", parece que o tempo todo elas estão à mercê de seguirem os mesmos passos dos adultos mas têm a chance de seguir um rumo melhor. Mas essa é uma interpretação bem subjetiva.
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A personagem Sakura é tão fora da realidade que chega a ser absurdo. Tento me lembrar de como eu era aos dez anos, para poder fazer uma comparação, e realmente acho que não chegava nem perto de ser tão desligada e desinteressada da vida quanto ela. Ela não percebe os problemas relativos à própria família, não percebe que o irmão pode usar magia (mesmo Kero a alertando sobre isso), não percebe que ele sabe sobre as Cartas Clow, nunca pergunta nada para Tomoyo a respeito da família dela, não demonstra o menor interesse em saber nada sobre o passado de seus pais, não percebe que Yukito está desaparecendo, não percebe que Kero e Yukito compartilham segredos, não percebe que Shaoram e Tomoyo gostam dela, não percebe que Eriol esconde algum segredo, e se eu for rever todos os episódios vou fazer uma lista gigantesca de coisas que ela não percebe ou não demonstra interesse em saber. Mesmo em relação às Cartas, ela não demonstra o menor interesse em saber mais sobre elas, sobre as personalidades delas, ou sobre o passado de Clow.
Até que, em um momento mágico de extrema lucidez, quando ela se declara para Yukito e ele diz que gosta de outra pessoa, ela fala "é do meu irmão, não é?". Tudo bem que era fácil perceber, mas havia tantas coisas que eram fáceis de perceber e ela não percebia, que é um choque ver ela falar aquilo com tanta naturalidade.
Eu me pergunto em que momento Sakura começou a desconfiar que havia algo mais na amizade de Yukito e Touya. Quando ela tem a conversa reveladora com Yukito, a forma como ela fala aquilo é natural demais; fica claro que aquilo era algo que já havia passado pela cabeça dela tantas vezes que ela já havia se acostumado com a ideia. O curioso é que em nenhum momento anterior ela demonstra estar desconfiada de algo, o que talvez indique que ela não é tão distraída quanto parece. Pensando agora, talvez ela saiba (ou desconfie) de muito mais coisa do que o anime mostra.
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Eu era apaixonada pelo Yukito.