quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Trechos

Trecho do livro que estou escrevendo (ainda não é a versão definitiva).

Nós nunca ficaremos juntos. John correu os olhos pelo corpo de David. Trinta anos. Que fossem mil, que fosse a eternidade - seria pouco.
Seu rosto estava tranqüilo. Será que sonha...? As batidas leves de seu coração ecoavam como bips pelo quarto. Aquelas batidas, John as ouvira tantas vezes, sua cabeça pousada sobre o peito de David... Mas então eram fortes, a vida pulsando com força dentro dele; agora, cada pulso era um esforço, um último resfolegar, a alma lutando para se manter presa ao corpo.
John foi até a janela. A noite escorrera para dentro do quarto.
- Que droga, é muito cedo!
Ele golpeou a parede com toda a força.
Todas as histórias de amor são tristes. Ana dissera, Ana estava certa. O menino que se apaixonara pela mãe ficara orfão. Dois meninos se apaixonavam e nunca ficariam juntos. Pecado, morte. Duas crianças pequenas, carregando o Diabo dentro de si.
Ainda muito novos, gostavam de explorar o corpo um do outro. Quero lembrar de você assim, enquanto ainda é jovem e bonito. Crianças... Lembrava-se, lembrava-se perfeitamente, nunca esqueceria. Mas não eram ainda belos? Eram, seriam sempre. Seriam crianças eternamente.
Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei vazio como os sinos que tocam. Mesmo que eu veja o futuro e conheça todos os segredos da existência, e mesmo que minha fé seja inabalável, se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu seja crucificado e lave os pecados do mundo com meu sangue, se não tiver amor, nada disso me aproveitará.
Ele sentou-se novamente.
Era cedo, sempre o seria. Um não podia suportar a idéia de perder o outro. Arranque meus membros ou queime meu corpo, mas não leve minha alma. Permaneciam ainda a fé, a esperança e o amor; porém, o maior destes era o amor.
David era seu templo; sem ele, desabaria.
Mas agora ele estava ali, deitado, inerte. E sua alma evaporava, lenta e ininterruptamente.
A noite era fria e delicada e cheia de anjos.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Feliz Dia dos Mortos!

É bizarro pra mim como as pessoas encaram com absoluta naturalidade um feriado tão macabro quanto o de Finados. O dia dos mortos. Comemora-se a morte! Como se houvesse um dia especial para que a morte aparecesse. Ou como se precisássemos de um dia especial para lembrar os nossos mortos.
Cada um carrega um cemitério particular dentro de si. O dia de finados existe para nos lembrarmos dos que já morreram, mas já nos lembramos deles em todos os outros dias do ano. Pode ser visto também como uma homenagem aos que se foram; só que se esquecem que o principal interessado - o morto - não vai ver homenagem alguma.
Algumas pessoas que eu conheço gastaram fortunas para fazer belíssimas lápides para seus parentes. Duvido muito que o falecido vá sentir diferença entre um lindo túmulo de mármore e uma cova rasa. Aqui expresso o meu desejo: se eu morrer - o que não é tão improvável - desejo ser enterrada em qualquer buraco, e que não se gaste um centavo comigo. Aos meus parentes religiosos, garanto que minha alma não ficará vagando por aí: como eu não acredito em Deus, irei direto para o inferno mesmo.
Tenho um grande respeito pelas lembranças que guardamos dos mortos. Se eu pudesse ver meu cemitério particular, seria mais ou menos assim: na "ala nobre", meu avô e meu cachorrinho; na parte "popular", uma conhecida e um amor inconfessado; e, por último, a área dos que não fazem falta - infelizmente, só um. Sim, eu adoraria que meus desafetos morressem e não me sinto culpada por dizer isso.
Acho que o dia de finados deveria servir para nos lembrarmos que estamos vivos. Não é tão ruim quanto parece. Eu ainda posso sentar na areia da praia e sentir a água gelada nos pés. Eu ainda posso escrever. Eu ainda posso subir em árvores. Eu ainda posso cair, me machucar, sentir dor. Eu posso amar, posso sentir prazer, posso me arrepender e começar tudo de novo. Um dia eu não vou poder mais.
Um dia, eu não vou sentir mais. Assim como aquelas pessoas embaixo da terra. Elas tiveram seu próprio tempo, e ele acabou. Continuarão nas nossas lembranças, mas serão só isso - lembranças. E, um dia, nós também seremos. Não sei quando - pode demorar, ou não. Pode ser antes do que imaginamos, provavelmente muito antes do que gostaríamos. Mas a verdade é que isso não tem a menor importância.
De qualquer forma, escrevo isso para que minha alma pare de sangrar.
Um bom feriado para vocês.
Carpe Diem.